quinta-feira, 10 de março de 2016

David Grossman entrevistado por Filipa Melo

Quando acabei de reler Ver: Amor, fiquei a pensar num paradoxo: o realismo não é suficiente quando se escreve sobre situações extremas. Passou-se assim com a literatura sobre a Shoá. Após a primeira geração de escritores-testemunhas, as gerações seguintes tiveram de recorrer à imaginação, para colorir as primeiras imagens a preto e branco.
Não creio que colorir seja um bom termo. Em Ver:Amor, usei o realismo mágico,
não para colorir, mas para analisar a situação sob outro ponto de vista. O romance corresponde a quatro tentativas muito diferentes de escrever sobre a Shoá: do realismo de Momik à corrente de consciência e realismo mágico de Bruno, ao registo quase teatral da relação entre Wasserman e Niegel e, no final, ao estilo enciclopédico ou semicientífico. Havia uma quinta parte, da qual desisti, porque senti que quatro eram suficientes para mostrar a impossibilidade de escrever sobre a Shoá. Sabemos que vamos falhar, mas temos de continuar a tentar. Por vezes, penso que olhar para a Shoá assemelha-se a olhar diretamente para o Sol.
La Rochefoucauld disse que «para o Sol e para a morte, não se olha de frente».
É belíssima a frase. É algo que eu sinto. De uma forma muito forte...Senti-o enquanto escrevia sobre a Shoá e senti-o ao escrever Até ao fim da Terra [ensombrado pela morte do filho, Uri Grossman, de 20 anos, abatido por um míssil do Hezbollah, em agosto de 2006, poucas horas antes do cessar-fogo entre Israel e o Líbano]. Há coisas para as quais não podemos olhar de frente porque nos cegam. ainda assim, porque sou escritor: não fugir à radiação ardente da Shoá ou de um luto pessoal....
O Escritor que escreve sobre a Shoá tem de aceitar que jamais será completamente compreendido pelos outros.
Concordo. E, no entanto, os dos, escritor e leitor, terão sido parceiros na tentativa humana de compreender algo. Não tentaram evitá-lo ou negá-lo. Assumiram esse fardo e toda a tristeza nele envolvida e tentaram olhar a Shoá nos olhos. Foi por isso que escolhi pôr Momik no início do livro, apesar de essa ter sido a última parte a ser escrita. Senti que precisava de captar o modo como uma crança tenta entender a Shoá. Porque, mesmo se formos adultos e tivermos lido todos os livros, visto todos os filmes, estudado todas as abordagens históricas, subsistirá sempre uma pequena parte de nós que, tal como acontece com as crianças, é incapaz de compreender.
Estamos dentro da radiação, mas não conseguimos dar-lhe uma forma?
Perante as perguntas principais, somos crianças indefesas, mesmo que sejamos adultos. Como é que alguém foi capaz de fazer uma coisa assim?
É inegável que pensar a Shoá é um fardo muito particular. Mas não acha que, num certo sentido, é também um ato que envolve algum masoquismo? Escarafunchar na tristeza e no horror, como se sofrêssemos de uma espécie de síndroma do sobrevivente (Elie Wiesel disse: «Estou vivo, logo sou culpado») Quanto mais percebemos que não conseguimos compreender, mais obcecados ficamos.
É verdade. Haverá sempre quem explore esse lado masoquista...Pode-se abusas de tudo, e também da Shoá. Mas...[Silêncio longo.] não há «mas»! Penso que existem três formas de tentar superar este fardo. Uma, é a via científica: procurar compreender como aconteceu. A outra é a das memórias dos nossos sobreviventes. A terceira é a via da arte. Ora, haverá cada vez menos sobreviventes e a via científica extinguir-se-á em breve (são conhecidos praticamente todos os factos que havia para conhecer). A expressão art´stca será a principal forma de gerar empatas nas gerações futuras em relação à Shoá. (pp. 70-71)

"Revsta Ler", Outono 2015, Nº 139

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