segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Carta de um judeu grego que sobreviveu a Auschwitz esteve 70 anos à espera de ser lida

Esta carta de um judeu grego que sobreviveu a Auschwitz esteve 70 anos à espera de ser lida

Foi escrita em 1944 e enterrada perto de um dos fornos crematórios deste complexo de extermínio na Polónia. Descoberta em 1980, só agora viu o seu conteúdo decifrado. “Não tenho medo de morrer”, escreve o soldado. “Afinal, como posso eu ter medo depois de tudo o que os meus olhos viram?”

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domingo, 26 de novembro de 2017

Walt Disney's Education for Death

Heinrich Heine: «Aqueles que começarem a queimar livros, acabarão queimando pessoas.»

sábado, 18 de novembro de 2017

Tatuagens

At Auschwitz, Livia Ravek was branded with the number 4559. Now her grandson, Daniel Philosoph, has the same tattoo.

George Steiner

George Steiner
A Longa Vida da Metáfora: Uma abordagem da Shoah 

Na teologia cristã, a questão de saber se há um modo de linguagem humana mediante o qual se pode falar adequadamente de Deus é um motivo clássico e perene. Ela constitui a esfera linguístico-filosófica da teologia hermenêutica. Oração a Deus não representa um problema; discurso sobre Deus, um problema verdadeiramente quase insolúvel. É precisamente o conceito de Deus que parece transcender as capacidades da linguagem, seja para definir, seja para empregar fielmente analogias sobre o objeto de conceptualizações e de expressão. O preceito wittgensteiniano de que os limites da linguagem são os limites do nosso mundo simplesmente confirma o dilema. a linguagem não pode ir além dos constrangimentos do intelecto humano e da imaginação. Por definição, Deus situa-se à margem de tais constrangimentos.
No judaísmo, este problema de epistemologia linguística, ou da teologia hermenêutica, não tem sido proeminente. De facto, a própria noção de «teologia», no sentido pós-paulino, pós-joanino e pós-agostiniano, não tem uma verdadeira equivalência no sentido religioso do Judaísmo. A força mais autêntica e duradoura na sensibilidade judaica não é uma reflexão ou um discurso metafísico sobre a natureza e os atributos de Deus, mas antes «vivência na Sua presença». A partir de Abraão, há um pacto de diálogo entre o crente judeu e Deus. Neste diálogo, o problema da linguagem não irrompe verdadeiramente. Como, porventura, em nenhuma outra fé, o Deus de Abraão e de Moisés, e daqueles a quem Ele escolheu falar, individualmente e enquanto comunidade, partilham a mesma linguagem. Quase podemos definir o mundo da linguagem do Judaísmo em relação a Deus como sendo afinidade idiomática.
Uma das consequências da Shoah, ou Holocausto, é ter transportado (violentamente, irreparavelmente) para o Judaísmo, tanto religioso como secular, o dilema hermenêutico. O problema sobre se há uma forma humana de linguagem adequada à conceptualização e à compreensão de Auschwitz, sobre se os limites da linguagem são insuficientes perante os limites da experiência da Shoah, está agora inextirpavelmente instalado na existência judaica.
Isto aplica-se, em primeiro lugar, a um nível teológico enquanto tal: em que linguagem concebível poderá ele falar sobre Deus? O desafio torna-se ainda mais profundo, mais corrosivo do o da hermenêutica cristã. No Judaísmo pós-Shoah, a questão da linguagem da oração - como poderá ela não ser cínica, acusatória ou desesperada? - é radicalmente colocada. Voltarei a esta questão através de um texto de Paul Celan que, somente ele (estou em crer) , é tão profundo e englobante como o próprio problema. (...)
Não é portanto, nenhum acidente que os níveis teológico-metafísicos da linguagem, da metáfora e do simbolismo sejam a fundação e o recurso constante do único escritor que, tanto quanto sei, não só nos levou ao centro inexprimível da experiência da Shoah, mas também - e isto é muito mais difícil e importante - situou o sentido dessa experiência no seio da definição do homem, da história e do discurso humano. Só um judeu que se forçou a escrever em alemão poderia ocasionar tal situação, como, antes dele, só um judeu a escrever em alemão poderia ser Kafka, o profeta. Que Paul Celan também esteja entre os maiores poetas de língua alemã e da literatura europeia moderna (sendo, talvez, um poeta ainda mais necessário do que foi Rilke); que Celan, sozinho, possa ombrear com Hölderlin tanto na poesia, como na sua prosa - é quase um prodígio extrínseco. A condição necessária e suficiente para os poemas de Celan é a situação de todo o dizer humano depois da Shoah, uma situação que Celan viveu e articulou perante a face ausente de Deus. Nesta testemunha suprema - "Wer", pergunta ele, "zeugt für den Zeugen?" ("Quem testemunha pela testemunha?") -, o destino do judeu, do génio denso da noite da língua alemã, do idioma de Auschwitz e de Belsen, e uma profunda intimidade com a herança hebraica e ídiche coalesceram; e coalesceram em torno de critérios centrais das ordens de questionamento teológico e metafísico.
Paul Celan
Quase não há um poema, uma parábola ou um discurso de Paul Celan que não consigam ilustrar este argumento. Se cito o famoso "Salmo", é devido à sua inultrapassável imensidão de implicação e nudez de expressão: (...)

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direção
a ti.

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo: a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-do-céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho.

(...) Tais conceitos não são suscetíveis de uma análise racional - tal como os poemas celanianos da Shoah não são suscetíveis de paráfrase crítica ou de interpretação aproximativa. Movemo-nos aqui na esfera da metáfora vivida, na linguagem para além de si própria, que é uma das imagens ou tropos (inteiramente insuficientes) mediante os quais podemos aproximar-nos um pouco mais da questão com que comecei: a das próprias possibilidades do discurso humano em relação a Deus e à Shoah - uma dualidade que, para o judeu, se tornou um irreparável uníssono. Perguntar quais são (se é que elas existem) essas possibilidades é perguntar de um modo metafísico e teológico. É reconhecer a inadequação essencial dos níveis pragmáticos-positivistas de análise.
Tal não significa que qualquer resposta viável chegará em breve. No suicídio de Paul Celan (em Paris, 1970), no auge dos seus poderes, reside mais do que um indício de uma desolação avassaladora. Como pode um judeu falar da Shoah na língua dos seus assassinos? Como pode ele falar dela em qualquer outra língua? Como pode ele pura e simplesmente falar dessa experiência? Sob a tensão da necessidade, mas uma necessidade que fustiga em vão contra os últimos confins da palavra humana, os poemas tardios de Celan introduzem um vocabulário, uma sintaxe e um modo semântico que são inacessíveis à maior parte de nós. Estão escritos numa língua "a norte do futuro". É possível que a Shoah tenha erradicado a graça do dizer, o mistério vivificante da metáfora significativa no discurso ocidental e, correlativamente, na mais alta organização do discurso a que chamamos poesia e pensamento filosófico. Haveria uma lógica justa e uma lógica da justiça de tal erradicação. Ou é possível que persista no seio do judaísmo a compulsão para a articulação - o mandamento do diálogo mesmo, com, ou até contra, um Deus mudo. (...)
A questão de Auschwitz vai muito além de uma patologia da política ou dos conflitos económicos e étnico-sociais (por muito importantes que estes sejam). É uma questão da existência ou inexistência de Deus, do "Ninguém" que nos criou, que não se pronunciou abertamente sobre o vento da morte e que está agora em julgamento. Nesse tribunal, que é o tribunal do homem na história, como pode a linguagem, sendo usada em acusação ou em defesa, a favor ou contra, ser uma linguagem da qual a Sua ausência está ausente e na qual salmo algum poderá ser recitado contra Ele?



George Steiner, As Artes do Sentido, Relógio d'Água, 2017





sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Elias Canetti

Onde está o historiador que teria conseguido fazer o prognóstico de Hitler? Mesmo que uma História particularmente conscienciosa fosse capaz, hoje, de retirar da sua circulação sanguínea, de uma vez por todas, a sua inerente admiração pelo poder, estaria em condições, na melhor das hipóteses, de nos advertir para um novo Hitler. Mas como este apareceria noutro sítio, também teria outra aparência e o aviso seria ocioso.

Elias Canetti, A Consciência das Palavras, Trad. Paulo Osório de Castro, Cavalo de Ferro, 2017

Entrevista a Primo Levi

No seu tempo de prisioneiro, partiu do princípio de que receberia um tratamento mais humano por parte de cientistas que reconhecessem a sua experiência científica?

Não parti desse princípio. A minha história era uma excepção. Como eles descobriram a minha experiência de químico, trabalhei num laboratório. Éramos três entre dez mil prisioneiros. A minha posição era extremamente excepcional, como a posição ou situação de todos os sobreviventes. Um prisioneiro normal morria. Era assim que saía dali. Depois de passar um exame de química, esperei algo mais dos meus chefes. Mas o único que tinha uma réstia de compreensão humana comigo era o Dr. Müller, meu supervisor no laboratório. Discutimos o assunto depois da guerra, por cartas. Era um homem normal, nem herói nem bárbaro. Fora transferido para Auschwitz uns dias antes. Portanto, sentiu-se confuso. Disseram-lhe: « Sim, nos nossos laboratórios, nas nossas fábricas, empregamos prisioneiros. São demónios, são adversários do nosso governo. Pomo-los a trabalhar para os explorar, mas não deves falar com eles. São perigosos, são comunistas, são assassinos. Por isso, põe-nos a trabalhar, mas não mantenhas contacto com eles.» Este Müller era um homem trapalhão, pouco esperto. Não era nazi. Tinha uma réstia de humanidade. Reparou que eu não me barbeava e perguntou-me a razão. «Não temos lâmina», disse-lhe. «Nem sequer temos um lenço. Estamos completamente nus. Despidos de tudo.» Passou-me uma requisição que dizia que eu devia ser barbeado duas vezes por semana, o que não constitui uma ajuda propriamente dita, mas um sinal. Além disso, reparou que eu usava tamancos de madeira. Barulhentos e desconfortáveis. Perguntou-me porquê. Respondi-lhe que os nossos sapatos nos eram tirados no primeiro dia. «Estes fazem parte do nosso uniforme, do padrão.» Conseguiu que eu recebesse sapatos de pele. Foi uma vantagem, porque os tamancos de madeira eram uma tortura. Ainda tenho as cicatrizes que deixaram. Se não estivéssemos habituados a eles, depois de menos de mil metros a caminhar, os pés começavam a sangrar, ficavam incrustados com poeiras e outras coisas, e infectavam. Ter sapatos de pele era uma vantagem importante. Por isso, senti uma espécie de gratidão para com este homem. Não era muito corajoso. Tinha medo dos SS, como eu. Interessava-lhe tornar o meu trabalho útil, não perseguir-me. Não tinha nada contra os judeus, contra os prisioneiros. Só esperava de nós que fôssemos trabalhadores eficientes. A história sobre ele n' O Sistema Periódico é completamente verídica. Nunca tive oportunidade de me encontrar com ele depois da guerra. Morreu uns dias antes da data que marcáramos. Telefonou-me de umas termas na Alemanha, onde estava a recuperar a saúde. Tanto quanto sei, a sua morte foi natural. Mas não tenho a certeza. Deixei a questão propositadamente em aberto n' O Sistema Periódico... para deixar o leitor na dúvida, tal como eu fiquei.
Primo Levi

Fala-me do Lorenzo que lhe dava de comida.

Com o Lorenzo, era diferente. Tratava-se de um homem sensível, uma espécie de santo, quase analfabeto. Depois da guerra, quando o encontrei em Itália, disse-me que não me tinha ajudado só a mim. Ajudou três ou quatro prisioneiros, sem dizer a um que ajudava o outro. Atenção, ele quase nunca falava. Era um homem muito calado. Recusava os meus agradecimentos. Quase não respondia às minhas palavras. Limitava-se a encolher os ombros: «Aceita o pão. Aceita o açúcar. Cala-te, não precisas de falar.»
Mais tarde, quando tentei salvá-lo, foi difícil chegar a ele, falar com ele. Era...muito ignorante, quase analfabeto, mal conseguia escrever. Não era religioso; não conhecia o evangelho, mas tentou instintivamente salvar pessoas, não por orgulho, não pela glória, mas por ter bom coração e entendimento humano. Perguntou-me certa vez, em palavras lacónicas: «Porque é que estamos no mundo, senão para nos ajudarmos uns aos outros?» Ponto final. Mas ele tinha medo do mundo. Depois de ver pessoas a morrer como moscas em Auschwitz, deixou de ser feliz. Não era judeu, nem prisioneiro. Mas era muito sensível. Quando regressou a casa, começou a beber. Fui visitá-lo - não vivia muito longe de Turim - para o convencer a deixar de beber. Abandonara o emprego de pedreiro e passou a comprar e a vender sucata para alimentar o vício. Bebia cada lira que ganhava. Perguntei-lhe porquê e ele respondeu-me com franqueza: «Já não gosto de viver. Estou farto da vida...Depois de ver a ameaça da bomba atómica...acho que já vi tudo...» Tinha percebido muitas coisas, mas não tinha sequer entendido onde estivera: em vez de Auschwitz, dizia Au-Schwiss, como Suiça. Tinha a geografia toda confundida. Não era capaz de cumprir um calendário. Embebedava-se e dormia na neve, completamente ébrio de vinho. Apanhou tuberculose. mandei-o para um hospital, para que se curasse. Mas, como eles não lhe davam vinho, fugiu. Morreu da tuberculose e do álcool. Sim. Foi um autêntico suicídio.

Entrevistas da Paris Review - 2, Trad. Rita Almeida Simões, Tinta da China, 2014 
(disponível na BE, estante d'«Os Estudos do Holocausto»)

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Yehuda Bauer

Teremos aprendido alguma coisa? As pessoas raramente aprendem a partir da história e a história do regime Nazi não constitui excepção. Também falhámos na compreensão do contexto geral. Nas nossas escolas falamos, por exemplo, de Napoleão e do modo como venceu a batalha de Austerlitz. Ganhou-a por si só? Alguém o terá ajudado nesse feito? Talvez uns tantos milhares de soldados? E o que aconteceu às famílias dos soldados mortos, aos feridos de ambos os lados, aos habitantes das cidades que foram destruídas, às mulheres que foram violadas, aos bens e posses que foram saqueados? Continuamos a ensinar acerca dos generais, acerca dos políticos e dos filósofos. Tentamos não reconhecer o lado negro da história - os assassínios em massa, a agonia, o sofrimento que, vindo de toda a história, nos esbofeteia. Não ouvimos o lamento de Clio. Continuamos a não compreender que nunca seremos capazes de lutar contra a nossa tendência para a aniquilação recíproca se não a estudarmos e a ensinarmos e se não enfrentarmos o facto de que os humanos são os únicos mamíferos capazes de aniquilar a sua própria espécie.

Yehuda Bauer, Retthinking the Holocaust, Trad. Luís Filipe Bettencourt,Yale U.P., 2001, p. 262

José Gil


É quase obsceno falar de Auschwitz quando não se esteve lá. Não é sobre Auschwitz que escrevo, mas sobre o que nos diz Primo Levi. O que ali se passou compromete a humanidade inteira. Não sabemos como. Mas sabemos que se os fundamentalistas islâmicos e os negacionistas de toda a espécie recusam admitir a existência do Holocausto, é porque sentem que ele ultrapassou os limites do mal humano, do avesso da lei moral e do crime habitual entre os homens. E que abalou os alicerces de todas as normas éticas conhecidas - não as transgredindo apenas, mas tirando-lhes o fundamento que se julgava garantir solidamente os comportamentos morais dos homens.
Mais do que qualquer argumento, o Holocausto atirou por terra o imperativo categórico de Kant, a moral cristã ou a doutrina dos Direitos do Homem.
O que Primo Levi viveu e nos conta, a máquina de terror e morte sem sentido, a organização concentracionária que visava deliberadamente uma imensa produção de sofrimento gratuito, a humilhação tão excessiva e destruidora a que era submetido o prisioneiro que lhe retirava o poder de se dizer «um homem» - transformando-o numa sub-humanidade a que nós, ainda hoje, não sabemos dar um nome -, tudo isso põe em questão o nosso próprio estatuto de humanos, hoje.

José Gil «O sinal da História», Visão, 15 de Ab
ril de 2010

domingo, 12 de novembro de 2017

George Steiner

Como avalia, então, cinquenta anos mais tarde a famosa declaração de Adorno: «Nenhuma poesia é possível depois de Auschwitz»?

Na altura pareceu-me uma declaração crucial e completamente natural; mas esperava refutação. A refutação aconteceu com a poesia de Paul Celan, que contrariou essa afirmação - e Adorno soube disso antes de morrer. Vamos recuar uns passos. A questão obscena de contar cadáveres não se põe, mas coloco no mesmo grupo os campos de concentração, tanto da Polónia, como da Alemanha, ou onde quer que sejam: o fenómeno da prisão em massa e do extermínio de milhões de seres humanos de uma ponta do mundo à outra. Uma das respostas possíveis é dizer que toda a nossa cultura se mostrou totalmente impotente e sem defesa, aliás, embelezou uma grande parte do assunto. Gieseking tocava a integral da música para Debussy durante as noites em que se ouviam os gritos das pessoas nos vagões de comboio selados na estação de Munique com destino a Dachau, nos arredores. Os gritos chegavam à sala de concertos. Isto foi registado. Nenhum testemunho sugere que ele não tenha tocado maravilhosamente bem, tão pouco que o público não se tenha mostrado completamente receptivo e profundamente comovido.
Sim, tivemos a crítica niilista de Adorno, ou a formulação de Walter Benjamin: «Na base de cada grande obra de arte estão os escombros da barbárie.» Podemos encarar esta frase como muitas pessoas da Escola de Frankfurt de certo modo fizeram, mas dando um passo em frente e dizendo: «É melhor calarmo-nos um bocadinho.» Já sonhei muitas vezes com a proibição de discutir estes assuntos - durante dez, quinze anos - , de modo que seja impossível reduzi-los a linguagem clara, que curiosamente os torna aceitáveis. Era disto que Adorno na realidade falava: cuidado! Mesmo o maior protesto, se formalizado, digamos, em verso, rima ou estrofes, impõe ao fenómeno uma aura de aceitabilidade.
O segundo passo, e também o mais difícil, foi dizer: «Não, apesar de tudo isto, ainda consigo transmitir ou comunicar algo da experiência essencial.» Entre toda a enorme diversidade de literatura dedicada ao Holocausto, só três ou quatro escritores conseguiram.

Quem são eles?

Celan acima de todos. Sem qualquer dúvida, Primo Levi, o escritor ítalo-judeu: magnífico, magnífico, magnífico. Não tem uma palavra fora do lugar; é um milagre. Um ou dois europeus de leste menos conhecidos, alguns contos letónios maravilhosos. Há talvez meia dúzia de textos onde diria que essa ousadia foi justificada. Mas a que custo? Celan suicidou-se. Primo Levi suicidou-se. Jean Améry suicidou-se. Muito depois, como se já tivessem prestado testemunho; deixou de haver sentido  na vida deles e na linguagem que usaram. Horroriza-me qualquer tentativa de capitalizar este material da parte de quem não viveu estas experiências em primeira mão.

Entrevistas da Paris Review - 3, Trad. Alda Rodrigues,  Tinta da China, Setembro 2017