sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Entrevista a Primo Levi

No seu tempo de prisioneiro, partiu do princípio de que receberia um tratamento mais humano por parte de cientistas que reconhecessem a sua experiência científica?

Não parti desse princípio. A minha história era uma excepção. Como eles descobriram a minha experiência de químico, trabalhei num laboratório. Éramos três entre dez mil prisioneiros. A minha posição era extremamente excepcional, como a posição ou situação de todos os sobreviventes. Um prisioneiro normal morria. Era assim que saía dali. Depois de passar um exame de química, esperei algo mais dos meus chefes. Mas o único que tinha uma réstia de compreensão humana comigo era o Dr. Müller, meu supervisor no laboratório. Discutimos o assunto depois da guerra, por cartas. Era um homem normal, nem herói nem bárbaro. Fora transferido para Auschwitz uns dias antes. Portanto, sentiu-se confuso. Disseram-lhe: « Sim, nos nossos laboratórios, nas nossas fábricas, empregamos prisioneiros. São demónios, são adversários do nosso governo. Pomo-los a trabalhar para os explorar, mas não deves falar com eles. São perigosos, são comunistas, são assassinos. Por isso, põe-nos a trabalhar, mas não mantenhas contacto com eles.» Este Müller era um homem trapalhão, pouco esperto. Não era nazi. Tinha uma réstia de humanidade. Reparou que eu não me barbeava e perguntou-me a razão. «Não temos lâmina», disse-lhe. «Nem sequer temos um lenço. Estamos completamente nus. Despidos de tudo.» Passou-me uma requisição que dizia que eu devia ser barbeado duas vezes por semana, o que não constitui uma ajuda propriamente dita, mas um sinal. Além disso, reparou que eu usava tamancos de madeira. Barulhentos e desconfortáveis. Perguntou-me porquê. Respondi-lhe que os nossos sapatos nos eram tirados no primeiro dia. «Estes fazem parte do nosso uniforme, do padrão.» Conseguiu que eu recebesse sapatos de pele. Foi uma vantagem, porque os tamancos de madeira eram uma tortura. Ainda tenho as cicatrizes que deixaram. Se não estivéssemos habituados a eles, depois de menos de mil metros a caminhar, os pés começavam a sangrar, ficavam incrustados com poeiras e outras coisas, e infectavam. Ter sapatos de pele era uma vantagem importante. Por isso, senti uma espécie de gratidão para com este homem. Não era muito corajoso. Tinha medo dos SS, como eu. Interessava-lhe tornar o meu trabalho útil, não perseguir-me. Não tinha nada contra os judeus, contra os prisioneiros. Só esperava de nós que fôssemos trabalhadores eficientes. A história sobre ele n' O Sistema Periódico é completamente verídica. Nunca tive oportunidade de me encontrar com ele depois da guerra. Morreu uns dias antes da data que marcáramos. Telefonou-me de umas termas na Alemanha, onde estava a recuperar a saúde. Tanto quanto sei, a sua morte foi natural. Mas não tenho a certeza. Deixei a questão propositadamente em aberto n' O Sistema Periódico... para deixar o leitor na dúvida, tal como eu fiquei.
Primo Levi

Fala-me do Lorenzo que lhe dava de comida.

Com o Lorenzo, era diferente. Tratava-se de um homem sensível, uma espécie de santo, quase analfabeto. Depois da guerra, quando o encontrei em Itália, disse-me que não me tinha ajudado só a mim. Ajudou três ou quatro prisioneiros, sem dizer a um que ajudava o outro. Atenção, ele quase nunca falava. Era um homem muito calado. Recusava os meus agradecimentos. Quase não respondia às minhas palavras. Limitava-se a encolher os ombros: «Aceita o pão. Aceita o açúcar. Cala-te, não precisas de falar.»
Mais tarde, quando tentei salvá-lo, foi difícil chegar a ele, falar com ele. Era...muito ignorante, quase analfabeto, mal conseguia escrever. Não era religioso; não conhecia o evangelho, mas tentou instintivamente salvar pessoas, não por orgulho, não pela glória, mas por ter bom coração e entendimento humano. Perguntou-me certa vez, em palavras lacónicas: «Porque é que estamos no mundo, senão para nos ajudarmos uns aos outros?» Ponto final. Mas ele tinha medo do mundo. Depois de ver pessoas a morrer como moscas em Auschwitz, deixou de ser feliz. Não era judeu, nem prisioneiro. Mas era muito sensível. Quando regressou a casa, começou a beber. Fui visitá-lo - não vivia muito longe de Turim - para o convencer a deixar de beber. Abandonara o emprego de pedreiro e passou a comprar e a vender sucata para alimentar o vício. Bebia cada lira que ganhava. Perguntei-lhe porquê e ele respondeu-me com franqueza: «Já não gosto de viver. Estou farto da vida...Depois de ver a ameaça da bomba atómica...acho que já vi tudo...» Tinha percebido muitas coisas, mas não tinha sequer entendido onde estivera: em vez de Auschwitz, dizia Au-Schwiss, como Suiça. Tinha a geografia toda confundida. Não era capaz de cumprir um calendário. Embebedava-se e dormia na neve, completamente ébrio de vinho. Apanhou tuberculose. mandei-o para um hospital, para que se curasse. Mas, como eles não lhe davam vinho, fugiu. Morreu da tuberculose e do álcool. Sim. Foi um autêntico suicídio.

Entrevistas da Paris Review - 2, Trad. Rita Almeida Simões, Tinta da China, 2014 
(disponível na BE, estante d'«Os Estudos do Holocausto»)

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