sábado, 18 de novembro de 2017

George Steiner

George Steiner
A Longa Vida da Metáfora: Uma abordagem da Shoah 

Na teologia cristã, a questão de saber se há um modo de linguagem humana mediante o qual se pode falar adequadamente de Deus é um motivo clássico e perene. Ela constitui a esfera linguístico-filosófica da teologia hermenêutica. Oração a Deus não representa um problema; discurso sobre Deus, um problema verdadeiramente quase insolúvel. É precisamente o conceito de Deus que parece transcender as capacidades da linguagem, seja para definir, seja para empregar fielmente analogias sobre o objeto de conceptualizações e de expressão. O preceito wittgensteiniano de que os limites da linguagem são os limites do nosso mundo simplesmente confirma o dilema. a linguagem não pode ir além dos constrangimentos do intelecto humano e da imaginação. Por definição, Deus situa-se à margem de tais constrangimentos.
No judaísmo, este problema de epistemologia linguística, ou da teologia hermenêutica, não tem sido proeminente. De facto, a própria noção de «teologia», no sentido pós-paulino, pós-joanino e pós-agostiniano, não tem uma verdadeira equivalência no sentido religioso do Judaísmo. A força mais autêntica e duradoura na sensibilidade judaica não é uma reflexão ou um discurso metafísico sobre a natureza e os atributos de Deus, mas antes «vivência na Sua presença». A partir de Abraão, há um pacto de diálogo entre o crente judeu e Deus. Neste diálogo, o problema da linguagem não irrompe verdadeiramente. Como, porventura, em nenhuma outra fé, o Deus de Abraão e de Moisés, e daqueles a quem Ele escolheu falar, individualmente e enquanto comunidade, partilham a mesma linguagem. Quase podemos definir o mundo da linguagem do Judaísmo em relação a Deus como sendo afinidade idiomática.
Uma das consequências da Shoah, ou Holocausto, é ter transportado (violentamente, irreparavelmente) para o Judaísmo, tanto religioso como secular, o dilema hermenêutico. O problema sobre se há uma forma humana de linguagem adequada à conceptualização e à compreensão de Auschwitz, sobre se os limites da linguagem são insuficientes perante os limites da experiência da Shoah, está agora inextirpavelmente instalado na existência judaica.
Isto aplica-se, em primeiro lugar, a um nível teológico enquanto tal: em que linguagem concebível poderá ele falar sobre Deus? O desafio torna-se ainda mais profundo, mais corrosivo do o da hermenêutica cristã. No Judaísmo pós-Shoah, a questão da linguagem da oração - como poderá ela não ser cínica, acusatória ou desesperada? - é radicalmente colocada. Voltarei a esta questão através de um texto de Paul Celan que, somente ele (estou em crer) , é tão profundo e englobante como o próprio problema. (...)
Não é portanto, nenhum acidente que os níveis teológico-metafísicos da linguagem, da metáfora e do simbolismo sejam a fundação e o recurso constante do único escritor que, tanto quanto sei, não só nos levou ao centro inexprimível da experiência da Shoah, mas também - e isto é muito mais difícil e importante - situou o sentido dessa experiência no seio da definição do homem, da história e do discurso humano. Só um judeu que se forçou a escrever em alemão poderia ocasionar tal situação, como, antes dele, só um judeu a escrever em alemão poderia ser Kafka, o profeta. Que Paul Celan também esteja entre os maiores poetas de língua alemã e da literatura europeia moderna (sendo, talvez, um poeta ainda mais necessário do que foi Rilke); que Celan, sozinho, possa ombrear com Hölderlin tanto na poesia, como na sua prosa - é quase um prodígio extrínseco. A condição necessária e suficiente para os poemas de Celan é a situação de todo o dizer humano depois da Shoah, uma situação que Celan viveu e articulou perante a face ausente de Deus. Nesta testemunha suprema - "Wer", pergunta ele, "zeugt für den Zeugen?" ("Quem testemunha pela testemunha?") -, o destino do judeu, do génio denso da noite da língua alemã, do idioma de Auschwitz e de Belsen, e uma profunda intimidade com a herança hebraica e ídiche coalesceram; e coalesceram em torno de critérios centrais das ordens de questionamento teológico e metafísico.
Paul Celan
Quase não há um poema, uma parábola ou um discurso de Paul Celan que não consigam ilustrar este argumento. Se cito o famoso "Salmo", é devido à sua inultrapassável imensidão de implicação e nudez de expressão: (...)

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direção
a ti.

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo: a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro-de-alma,
o estame ermo-do-céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantámos
sobre, oh sobre
o espinho.

(...) Tais conceitos não são suscetíveis de uma análise racional - tal como os poemas celanianos da Shoah não são suscetíveis de paráfrase crítica ou de interpretação aproximativa. Movemo-nos aqui na esfera da metáfora vivida, na linguagem para além de si própria, que é uma das imagens ou tropos (inteiramente insuficientes) mediante os quais podemos aproximar-nos um pouco mais da questão com que comecei: a das próprias possibilidades do discurso humano em relação a Deus e à Shoah - uma dualidade que, para o judeu, se tornou um irreparável uníssono. Perguntar quais são (se é que elas existem) essas possibilidades é perguntar de um modo metafísico e teológico. É reconhecer a inadequação essencial dos níveis pragmáticos-positivistas de análise.
Tal não significa que qualquer resposta viável chegará em breve. No suicídio de Paul Celan (em Paris, 1970), no auge dos seus poderes, reside mais do que um indício de uma desolação avassaladora. Como pode um judeu falar da Shoah na língua dos seus assassinos? Como pode ele falar dela em qualquer outra língua? Como pode ele pura e simplesmente falar dessa experiência? Sob a tensão da necessidade, mas uma necessidade que fustiga em vão contra os últimos confins da palavra humana, os poemas tardios de Celan introduzem um vocabulário, uma sintaxe e um modo semântico que são inacessíveis à maior parte de nós. Estão escritos numa língua "a norte do futuro". É possível que a Shoah tenha erradicado a graça do dizer, o mistério vivificante da metáfora significativa no discurso ocidental e, correlativamente, na mais alta organização do discurso a que chamamos poesia e pensamento filosófico. Haveria uma lógica justa e uma lógica da justiça de tal erradicação. Ou é possível que persista no seio do judaísmo a compulsão para a articulação - o mandamento do diálogo mesmo, com, ou até contra, um Deus mudo. (...)
A questão de Auschwitz vai muito além de uma patologia da política ou dos conflitos económicos e étnico-sociais (por muito importantes que estes sejam). É uma questão da existência ou inexistência de Deus, do "Ninguém" que nos criou, que não se pronunciou abertamente sobre o vento da morte e que está agora em julgamento. Nesse tribunal, que é o tribunal do homem na história, como pode a linguagem, sendo usada em acusação ou em defesa, a favor ou contra, ser uma linguagem da qual a Sua ausência está ausente e na qual salmo algum poderá ser recitado contra Ele?



George Steiner, As Artes do Sentido, Relógio d'Água, 2017





Sem comentários:

Enviar um comentário