quinta-feira, 16 de novembro de 2017

José Gil


É quase obsceno falar de Auschwitz quando não se esteve lá. Não é sobre Auschwitz que escrevo, mas sobre o que nos diz Primo Levi. O que ali se passou compromete a humanidade inteira. Não sabemos como. Mas sabemos que se os fundamentalistas islâmicos e os negacionistas de toda a espécie recusam admitir a existência do Holocausto, é porque sentem que ele ultrapassou os limites do mal humano, do avesso da lei moral e do crime habitual entre os homens. E que abalou os alicerces de todas as normas éticas conhecidas - não as transgredindo apenas, mas tirando-lhes o fundamento que se julgava garantir solidamente os comportamentos morais dos homens.
Mais do que qualquer argumento, o Holocausto atirou por terra o imperativo categórico de Kant, a moral cristã ou a doutrina dos Direitos do Homem.
O que Primo Levi viveu e nos conta, a máquina de terror e morte sem sentido, a organização concentracionária que visava deliberadamente uma imensa produção de sofrimento gratuito, a humilhação tão excessiva e destruidora a que era submetido o prisioneiro que lhe retirava o poder de se dizer «um homem» - transformando-o numa sub-humanidade a que nós, ainda hoje, não sabemos dar um nome -, tudo isso põe em questão o nosso próprio estatuto de humanos, hoje.

José Gil «O sinal da História», Visão, 15 de Ab
ril de 2010

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