domingo, 13 de março de 2016

Da negação do Holocausto à liberdade de expressão

Negação do Holocausto

A discussão de Mill [acerca do problema da liberdade de expressão], porém, lança realmente luz sobre a questão da negação do Holocausto especificamente sobre o crucial julgamento por difamação que o agora desacreditado historiador David Irving Denying the Holocaust, Lipstadt referiu-se a Irving como «um dos mais perigosos porta-vozes da negação do Holocausto.
David Irving
levantou contra a historiadora Deborah Lipstadt. Num livro publicado em 1994,
Após a publicação do livro, Irving processou Lipstadt e o seu editor britânico Penguin UK, por difamação. Na lei britânica da difamação, o ónus da prova cabe ao réu e não queixoso. (....)
Isto significava que Lipstadt tinha de provar que a sua avaliação de Irving como negador do Holocausto estava correcta. O processo de reunir provas conclusivas contra as afirmações de Irving era complexo e moroso. Foram precisos vários anos de investigação, inclusive a arquivos e até mesmo a Auschwitz. A dado ponto, os advogados de Lipstadt provaram o seu caso em tribunal.
Ela obteve uma vitória convincente, tende o juiz declarado que era «indisputável que Irving satisfaz as condições para ser considerado um negador do Holocausto». Afirmou também que:

O tratamento que Irving dá aos indícios históricos é tão perverso e francamente mau que se torna difícil aceitar tratar-se de inadvertência da sua parte.

e

Irving distorceu deliberadamente os indícios para os fazer conformarem-se às suas crenças políticas.

Este caso dependia de questões acerca da verdade. Estava em jogo uma questão acerca dos factos históricos. É ou não verdade que milhões de pessoas foram assassinadas em câmaras de gás durante a II Guerra Mundial?
E será verdade que David Irving distorceu deliberadamente os indícios acerca do Holocausto?
Lipstadt reagiu à negação do Holocausto por Irving com contra-discurso e contra-indícios. Irving, por contraste, em vez de preferir discutir os detalhes com Lipstadt de modo académico, usou a força da lei para tentar silenciá-la.
Felizmente, Lipstadt
Deborah Lipstadt
e o seu editor, a Penguin, estavam em condições de reunir os indícios relevantes para contestar o processo por difamação. Muitos autores e seus editores teriam, na mesma situação, sido mais ou menos forçados a um acordo extra-judicial. Há também a sugestão de que alguns editores teriam tido relutância, antes do julgamento, em publicar livros que criticassem Irving, por receio de que ele também ameaçasse processá-los. Assim, no tribunal, os contra-argumentos e contra-indícios comprometeram as afirmações de Irving.
Um efeito secundário foi que os historiadores do Holocausto passaram a ser muito mais minuciosos do que antes ao apresentarem indícios contra os negadores do Holocausto.
A existência de um inimigo em campo foi suficiente para dar enfoque e um vigor renovado à sua busca de indícios mais conclusivos acerca de como, precisamente, os nazis encetaram uma matança sistemática no Holocausto. Outro efeito foi tornar mais bem conhecidas algumas das «interpretações» extremas que Irving fez dos indícios. (....)
Essa é essencialmente uma das ideias de John Stuart Mill acerca do valor da livre expressão, contra o restringir da expressão. Neste caso, Irving, ao processar Lipstadt, propiciou um fórum público em que se poderia dar resposta, passo a passo, a parte do seu discurso mais ofensivo e falacioso, uma resposta fundamentada por indícios detalhados e com um árbitro na pessoa do juiz. O julgamento sobre Irving tem um epílogo que também clarifica complementarmente alguns tópicos acerca da livre expressão. Há na Áustria leis contra a minimização de crimes cometidos contra o Terceiro Reich. Em 2006, de visita a Viena, David Irving foi detido e preso ao abrigo dessas leis. Da perspectiva dos argumentos apresentados em Sobre a Liberdade, de Mill
, essas regras são danosas para a procura da verdade. Era óbvio para Mill que mesmo as perspectivas falsas têm um papel a desempenhar no livre mercado das ideias. Se silenciarmos quem profere falsidades, corremos o risco de nos tornarmos dogmáticos, de querer sem compreensão ou de sentir entusiasmo pelos indícios que sustentam as nossas crenças. Corremos também o risco de que essas falsas crenças se dê maior crédito precisamente pelo facto de serem suprimidas, em vez de abertamente refutadas.
As leis austríacas converteram Irving em algo parecido com o mártir da liberdade de expressão. O julgamento de Londres, onde as suas perspectivas foram desafiadas e conclusivamente refutadas em público, teve consequências muito melhores. As leis que impedem interpretações específicas da História estão claramente nos antípodas da livre expressão. Mas podem também glorificar inadvertidamente quem por elas é silenciado - dificilmente será este o efeito que se deseja.

Nigel Warburton, Liberdade de Expressão - Uma breve Introdução, (Trad. Vitor Guerreiro), Gradiva, 2015, pp. 41-45

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