quarta-feira, 30 de março de 2016

Wisława Szymborska (1923-2012)

A MÃO
Vinte e sete ossos,
trinta e cinco músculos,
cerca de duas mil células nervosas
em cada uma das pontas dos cinco dedos.
É quanto basta
para escrever ‘Mein Kampf’
ou ‘A Casinha do Ursinho Puff’.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Sobre «O Universo Concentracionário» de David Rousset

por José Marmeleira em " Um dos primeiros testemunhos do terror nazi", Ípsilon/Público, 25 Março 2016 

Um dos primeiros testemunhos do terror nazi, O Universo Concentracionário, de David Rousset ( !912-1997), conclui-se com um aviso. Escreve o autor francês (112): " A sociedade alemã, quer devido à sua estrutura económica quer à dureza da crise que a arruinou, conheceu uma decomposição ainda excepcional na actual conjuntura do mundo. Mas seria fácil mostrar que os traços mais característicos, não só da mentalidade S.S. como também dos alicerces sociais, se encontram em muitos outros sectores da sociedade mundial. (...) Seria um logro, e criminoso, pretender que é impossível aos outros povos fazerem experiência semelhante por terem uma natureza diferente ". Este é um homem em sobreaviso. Nada garante que o que aconteceu permaneça para uma excepção ou irrepetível. Nada.
Ditado por Rousset a mulher em 1945, o ano da sua libertação do Campo Wöbbelin (Norte da Alemanha), o Universo Concentracionário pretende ser uma descrição objectiva [...]
David Rousset começa por descrever, dum ponto de vista cimeiro, uma mescla de corpos e máquinas, terra e morte. O olhar descerá, depois, sobre os cadáveres e torpedos que se confundem com as imundícies, os ventres gelados que os gritos e as pancadas sacodem.
Buchenwald, onde foi encerrado em 1943, é uma cidade isolada que "vive sob o signo de um enorme humor, de uma palhaçada trágica". Chegados à cidade, os detidos saltam dos vagões, como "bonecos de corda partida", "cegos de golpes", "pegajosos de medo". Arrastam-se pelos corredores kafkianos e seguem para os barracões onde, despidos de tudo, serão vacinados sob rajadas de vento. [...]
Os campos que o autor conheceu (Buchenwald, Neuengamme, Porta Westfalica, Wöbbelin) não eram de extermínio, mas entre eles e Auschwitz a diferença era de grau, não de natureza. Em todos se enforcavam homens. A entrada no universo concentracionário já se fez. Aqui vigoram as leis da vida biológica, a competição encarniçada pela sobrevivência. As idades, as profissões, as posições sociais, as biografias desfazem-se lentamente. "O velho é um objecto de escárnio e de desprezo, por causa da fraqueza. A única coisa que conta é o poder" (p. 46) [...]
Mas seria indigno de Universo Concentracionário (fonte incontornável de As Origens do Totalitarismo, De Hannah Arendt), concluir este texto sem lembrar a insistência dos detidos políticos em falar e conversar, apesar das ameaças, e as palavras que Rouusset dedica aos que permanecem firmes. Erich, Emil, Kurt, que nunca bateram em ninguém, Walter, que continuou sensível, Ernest, simpático, que manteve uma vida sã, normal. Todos mantiveram incólume a sua dignidade naquele inferno.
David Rousset (no centro da foto, de óculos)



domingo, 20 de março de 2016

La complainte du partisan - Mouloudji

[calássemo-nos nós, gritariam as pedras?]

Frauke Petry
"Sete décadas depois do fim da II Guerra Mundial, um partido de extrema-direita está a tornar-se a terceira maior força política na Alemanha (...)
O partido liderado desde Julho do ano passado por Frauke Petry, uma ex-empresária da indústria química de 40 anos nascida em Dresden, na Alemanha de Leste, passou a estar representado nos parlamentos regionais de oito estados federados - metade dos 16 que formam a Alemanha Federal. E as possibilidades de entrar no Parlamento em Berlim nas eleições legislativas de Outubro de 2017 crescem cada vez mais. (...)
 Frauke Petry é um rosto feminino jovem e muitas vezes sorridente, num partido novo - com cerca de três anos - formado por homens brancos de certa idade. Os fãs comparam-na com a actriz norte-americana Audrey Hepburn e os adversários à líder da Frente Nacional, Marine Le Pen. (...)
A AfD é um reflexo do que acontece na paisagem política de extrema-direita alemã, em que há desde neonazis até aos alinhados com a nova direita europeia, cristãos radicais e alinhados com Israel; há várias vozes fortes no interior deste partido. "É uma colecção de ideólogos radicais cristãos, veteranos militares arquiconservadores, professores de economia muito emproados e empresários desiludidos. É uma colecção estranha - e que se tem mostrado vulnerável a tentações radicais", escreve a revista ["Der Spiegel"] alemã.
A ligação Pegida
Uma coisa é óbvia: a AfD tem uma proximidade óbvia com o braço político do Pegida, vários políticos da AfD sobem ao palco nas manifestações e usam expressões semelhantes às de Lutz Bachmann, o líder do Pegida. A mais conhecida será "imprensa mentirosa" - um termo usado pelo regime nazi nos anos 1930, ao chegar ao poder na Alemanha.
A "imprensa-Pinóquio", que assim é acusada de mentir, em 'slogans' cantados nas manifestações da Pegida, servem a Lutz para recusar falar com os 'media'. Mas, por outro lado, Lutz, que teve de se afastar durante algum tempo depois de ter sido divulgada uma foto sua mascarado de Hitler, explora notícias publicadas em qualquer meio de comunicação social, por mais incríveis ou não confirmadas que sejam, para espalhar o medo, através do Facebook, onde tem cerca de 20 mil seguidores.
do artigo "Ser do contra é o programa da nova extrema-direita alemã" por Clara Barata, Público, Dom 20 Março 2016

domingo, 13 de março de 2016

Cumpridores!

Como devemos ler estas proibições legais contra a formulação de dúvidas (em público) acerca do(s) facto(s) do Holocausto? O senso comum moral que nos diz que há aqui qualquer coisa que soa a falso é na circunstância certeiro: a legalização do estatuto intocável do Holocausto é, em certo sentido, a versão mais refinada e perversa da negação do Holocausto. Embora reconhecendo plenamente o(s) facto(s) do Holocausto, essas leis neutralizam a sua eficácia simbólica. Através da sua existência, a memória do Holocausto é posta no exterior, e o indivíduo é posto ao abrigo do seu impacto. Passo a poder responder tranquilamente aos críticos: « Está escrito na nossa lei e determinado por ela. Por isso, o único problema é estarmos atentos a que seja cumprida. Quanto ao resto, deixem-me viver agora em paz!» 







Slavoj Žižek, Violência Seis Notas À Margem, Trad. Miguel Serras Pereira,  Relógio D’Água, 2009, p. 101


0.20 de Anne Frank

Da negação do Holocausto à liberdade de expressão

Negação do Holocausto

A discussão de Mill [acerca do problema da liberdade de expressão], porém, lança realmente luz sobre a questão da negação do Holocausto especificamente sobre o crucial julgamento por difamação que o agora desacreditado historiador David Irving Denying the Holocaust, Lipstadt referiu-se a Irving como «um dos mais perigosos porta-vozes da negação do Holocausto.
David Irving
levantou contra a historiadora Deborah Lipstadt. Num livro publicado em 1994,
Após a publicação do livro, Irving processou Lipstadt e o seu editor britânico Penguin UK, por difamação. Na lei britânica da difamação, o ónus da prova cabe ao réu e não queixoso. (....)
Isto significava que Lipstadt tinha de provar que a sua avaliação de Irving como negador do Holocausto estava correcta. O processo de reunir provas conclusivas contra as afirmações de Irving era complexo e moroso. Foram precisos vários anos de investigação, inclusive a arquivos e até mesmo a Auschwitz. A dado ponto, os advogados de Lipstadt provaram o seu caso em tribunal.
Ela obteve uma vitória convincente, tende o juiz declarado que era «indisputável que Irving satisfaz as condições para ser considerado um negador do Holocausto». Afirmou também que:

O tratamento que Irving dá aos indícios históricos é tão perverso e francamente mau que se torna difícil aceitar tratar-se de inadvertência da sua parte.

e

Irving distorceu deliberadamente os indícios para os fazer conformarem-se às suas crenças políticas.

Este caso dependia de questões acerca da verdade. Estava em jogo uma questão acerca dos factos históricos. É ou não verdade que milhões de pessoas foram assassinadas em câmaras de gás durante a II Guerra Mundial?
E será verdade que David Irving distorceu deliberadamente os indícios acerca do Holocausto?
Lipstadt reagiu à negação do Holocausto por Irving com contra-discurso e contra-indícios. Irving, por contraste, em vez de preferir discutir os detalhes com Lipstadt de modo académico, usou a força da lei para tentar silenciá-la.
Felizmente, Lipstadt
Deborah Lipstadt
e o seu editor, a Penguin, estavam em condições de reunir os indícios relevantes para contestar o processo por difamação. Muitos autores e seus editores teriam, na mesma situação, sido mais ou menos forçados a um acordo extra-judicial. Há também a sugestão de que alguns editores teriam tido relutância, antes do julgamento, em publicar livros que criticassem Irving, por receio de que ele também ameaçasse processá-los. Assim, no tribunal, os contra-argumentos e contra-indícios comprometeram as afirmações de Irving.
Um efeito secundário foi que os historiadores do Holocausto passaram a ser muito mais minuciosos do que antes ao apresentarem indícios contra os negadores do Holocausto.
A existência de um inimigo em campo foi suficiente para dar enfoque e um vigor renovado à sua busca de indícios mais conclusivos acerca de como, precisamente, os nazis encetaram uma matança sistemática no Holocausto. Outro efeito foi tornar mais bem conhecidas algumas das «interpretações» extremas que Irving fez dos indícios. (....)
Essa é essencialmente uma das ideias de John Stuart Mill acerca do valor da livre expressão, contra o restringir da expressão. Neste caso, Irving, ao processar Lipstadt, propiciou um fórum público em que se poderia dar resposta, passo a passo, a parte do seu discurso mais ofensivo e falacioso, uma resposta fundamentada por indícios detalhados e com um árbitro na pessoa do juiz. O julgamento sobre Irving tem um epílogo que também clarifica complementarmente alguns tópicos acerca da livre expressão. Há na Áustria leis contra a minimização de crimes cometidos contra o Terceiro Reich. Em 2006, de visita a Viena, David Irving foi detido e preso ao abrigo dessas leis. Da perspectiva dos argumentos apresentados em Sobre a Liberdade, de Mill
, essas regras são danosas para a procura da verdade. Era óbvio para Mill que mesmo as perspectivas falsas têm um papel a desempenhar no livre mercado das ideias. Se silenciarmos quem profere falsidades, corremos o risco de nos tornarmos dogmáticos, de querer sem compreensão ou de sentir entusiasmo pelos indícios que sustentam as nossas crenças. Corremos também o risco de que essas falsas crenças se dê maior crédito precisamente pelo facto de serem suprimidas, em vez de abertamente refutadas.
As leis austríacas converteram Irving em algo parecido com o mártir da liberdade de expressão. O julgamento de Londres, onde as suas perspectivas foram desafiadas e conclusivamente refutadas em público, teve consequências muito melhores. As leis que impedem interpretações específicas da História estão claramente nos antípodas da livre expressão. Mas podem também glorificar inadvertidamente quem por elas é silenciado - dificilmente será este o efeito que se deseja.

Nigel Warburton, Liberdade de Expressão - Uma breve Introdução, (Trad. Vitor Guerreiro), Gradiva, 2015, pp. 41-45

sexta-feira, 11 de março de 2016

Os campos de concentração

O campo encontrava-se cercada por duas ou três vedações de arame farpado, geralmente electrificados, intersectadas por torres de vigias, onde havia guardas armados de metralhadoras que mantinham sob vigilância, de dia e noite, o perímetro do campo. Tinha de existir apenas um portão no campo, por cima do qual estava habitualmente inscrito: Arbeit macht frei (O trabalho liberta).
Os detidos que chegavam eram levados para uma área onde eram postos de quarentena (um quarto, uma cabana ou uma tenda). Aí eram totalmente despidos; muitas vezes tomavam um duche e eram desinfectados, sendo o cabelo completamente rapado. Por fim, eram registados e tatuados. Os «números mais baixos» eram, por sonseguinte, os deportados que tinham sobrevivido durante mais tempo, eram tidos em grande consideração pelos restantes e ocasionalmente eram-lhes dadas pequenas vantagens,
De seguida era-lhes dada roupa de deportados – o famoso «pijama» às riscas. Nos primeiros tempos, os deportados trocavam de roupa de modo a terem uma que lhes servisse. Nos anos finais, como já se tratava de roupas recuperadas àqueles que tinham sido seleccionados, muitas vezes não eram mais do que farrapos.
Após algum tempo, os novos detidos eram mandados para um bloco e incluídos num Kommando. O bloco era constituído por um conjunto de cabanas, geralmente de madeira, onde os internados dormiam em beliches de madeira com vários andares. Tinham de dormir várias pessoas no mesmo andar e tinham de se deitar de lado para caberem. Estes beliches podiam ter colchão, enchidos com um pouco de palha, mas o mais comum era nem sequer terem nada ou no máximo terem um cobertor. O bloco não tinha instalações sanitárias. Em certos casos, existia um balde ou uma bacia – que, quando limpa, podia servir para o «café» da manhã. À noite os detidos estavam proibidos de se ausentarem do bloco para irem às latrinas: aqueles que arriscavam a saída podiam ser mortos se fossem apanhados. O bloco era dirigido pelos «mais velhos» (Eltern) – escolhidos pelos guardas: era responsabilidade dos Eltern destinarem os beliches e manterem a ordem no bloco. A prática rapidamente demonstrou que os deportados «políticos» se comportavam de uma forma muito mais humana nesse papel do que os criminosos comuns. Os Kommandos eram grupos de trabalho. Alguns eram permanentes, outros temporários, dependendo da natureza do trabalho que efectuavam. Também existiam Kommandos  disciplinares. Mas o essencial na sobrevivência no trabalho não era necessariamente a sua natureza ou grau de dificuldade; era antes a personalidade do Kapo que dirigia o Kommando. Alguns desses, os criminosos comuns, agiam de forma brutal, ocasionalmente, quando o Kommando saía demanhã para o trabalho, os guardas das SS instruíam o Kapo para regressar com um determinado número de mortos; cabia-lhe a escolha das vítimas, de onde e como seriam mortas.
Cada farda tinha a marca da sua categoria; o triângulo verde indicava os criminosos comuns. Eram estes que constituíam a maioria dos kapos – em alguns casos isso levou a alguns melhoramentos nas condições de detenção.
Havia triângulos de outras cores: preto, para os «a-sociais»; castanho, para os Ciganos; azul, para os apátridas; cor-de-rosa, para os homossexuais; e púrpura para as Testemunhas de Jeová.
Contudo, o triângulo amarelo era de longe a marca mais vista e era usada pelos judeus. Eram eles que constituíam o grosso daqueles que, em Auschwitz, e depois nos outros campos, eram apelidados de «Muselmanner» (muçulmanos): particularmente fragilizados pela fome (as rações diárias eram compostas por uma tigela do famoso caldo ralo e por um pequeno pedaço de «pão», cujo número de calorias, em teoria, era calculado para não garantir a sobrevivência), a longa sessão de chamada pela manhã, as caminhadas até aos locais de trabalho, o trabalho árduo e os espancamentos frequentes, estes homens perdiam toda a dignidade de toda e qualquer consciência, à excepção da fome; perdiam a capacidade de pensar e de falar.
Em termos gerais, a luta pela sobrevivência isolou cada um dos deportados, que tinha de lutar para conservar aquilo que possuía (roupa, sapatos, tigela, colher, um pedaço diário de pão; afastar os olhos desses bens, por um momento, representava a possibilidade de ser roubado) e de tentar obter suplementos de todas as formas possíveis.
(…) No campo, os dias seguiam um ritual inalterável: levantar, limpar o bloco, distribuição do «café» e do pedaço diário de pão. Após uma higiene rudimentar, os prisioneiros tinham de se apresentar no pátio para a chamada. Em fila, todos os internos eram chamados pelo seu número de registo. Se o registo da chamada estivesse incompleto, recomeçavam a chamada – tantas vezes quantas as necessárias até estar completa. Por esta razão, assim sendo a chamada podia durar horas, independentemente do estado do tempo.
Se a noite anterior tivesse ocorrido um incidente ou uma fuga, o sofrimento era sistematicamente prolongado.
Após a chamada completa, os kommandos partiam para o trabalho. Em determinados campos existia uma orquestra de deportados que tocava quando partiam e quando regressavam à noite. O dia de trabalho 8de 8-9 horas no  Inverno e de 10-12 no Verão) era interrompido apenas para a distribuição da sopa. À noite era feita nova chamada, seguida do regresso aos blocos. De tempos a tempos, os deportados eram autorizados a tomar um banho.
Certas funções ou certos kommandos ofereciam uma maior possibilidade de sobrevivência: a enfermagem, o serviço de cozinha, e os serviços auxiliares 8por exemplo, Primo Levi foi utilizado como farmacêutico). Quando os kommandos trabalhavam no exterior do campo, era raro que não fossem ajudados por algum trabalhador local compadecido. Os responsáveis pela entrega de sopa aos Kommandos comiam os poucos bocados de carne que esta tinha. À parte da capacidade de realizar trabalhos muito especializados, para sobreviver, era necessário ter o velho ou o kapo do seu lado, e para que tal sucedesse, isso era muitas vezes conseguido à custa dos demais. Era frequente a prostituição, tanto feminina, quanto masculina (e não apenas por parte de homossexuais) – com os SS, auxiliares locais, os velhos ou kapos, ou os deportados «privilegiados».

J. M. Lecomte, Ensinar o Holocausto no Século XXI, Via Occidentalis, 2007, pp. 121-125 
(livro disponível na biblioteca da escola, na estante "Estudos do Holocausto/Shoá") 



Outra vez Terezín, a hipocrisia!

Wiesel & Adelsberger: a fome

Eli Wiesel em 1943 (com 15 anos)
«Alguns dias depois, fecharam o gabinete do dentista, que tinha sido metido na prisão. Ia ser enforcado. Tinha-se descoberto que ele traficava os dentes de ouro dos detidos em seu proveito próprio. Não sentia qualquer piedade em relação a ele. Estava mesmo muito contente com o que lhe acontecera: salvara a minha coroa de ouro. Um dia, ela poderia ser-me útil para comprar alguma coisa, o pão, a vida. Já só me interessava pelo meu prato de sopa quotidiano, pelo meu bocado de pão meio duro. O pão, a sopa – eram a minha vida. Eu era um corpo. Talvez menos do que isso: era um estômago esfomeado. Só o estômago sentia a passagem do tempo.»

Elie Wiesel, Noite, Texto Editora, Porto, 2003, p. 60 (livro disponível na biblioteca da escola, na estante "Estudos do Holocausto/Shoá") 

Memórias da Dra. Lucie Adelsberger

«Aquele que conheceu a fome sabe que não se trata apenas de uma sensação animal, mas sim de um suplício que põe os nervos em franja, de uma agressão contra a totalidade da pessoa. A fome torna as pessoas más e altera o carácter. Muitas coisas quando observadas do exterior parecem, a todos os títulos, monstruosas; mas quando relativas aos detidos tornam-se compreensíveis, e até desculpáveis, se forem vistas à luz da fome.»

Citado em Lecomte, p. 125, Ensinar o Holocausto no Século XXI, Via Occidentallis, 2007 (livro disponível na biblioteca da escola, na estante "Estudos do Holocausto/Shoá")

"Terezín", foto de D. Blaufuks


quinta-feira, 10 de março de 2016

Helen Lewis


Ainda antes de 1942, os judeus foram obrigados a entregar às autoridades não apenas os aparelhos de rádio, como as suas jóias, pratas, peles e tudo quanto tivesse valor. Que mais haveria ainda para lhes tirar? Por incrível que pareça a resposta é «os animais de estimação», esses pequenos e inocentes amigos que tantas vezes são a única alegria que nos resta num mundo envolto em trevas. Para alguns, em especial para as crianças e velhos, foi este o golpe mais duro. No dia aprazado, lá iam eles nos eléctricos, os rostos brancos, a tentar sufocar as lágrimas, agarrados aos pequenos volumes que deviam entregar nos centros de recepção: porquinhos-da-índia, hamsters, ratinhos brancos, tartarugas e, claro está, gaiolas com pássaros. Os mais difíceis eram os cães e os gatos, que gritavam durante todo o percurso, como se soubessem. O pai de Paul, um cavalheiro alto, tranquilo e sempre muito digno, foi obrigado a entregar Pepicek, o canário de que tanto gostava. Nessa noite parecia mais pequeno, mais enrugado e desamparado. (pp. 46-47)

Tempo para Falar, Planeta, 2013






David Grossman entrevistado por Filipa Melo

Quando acabei de reler Ver: Amor, fiquei a pensar num paradoxo: o realismo não é suficiente quando se escreve sobre situações extremas. Passou-se assim com a literatura sobre a Shoá. Após a primeira geração de escritores-testemunhas, as gerações seguintes tiveram de recorrer à imaginação, para colorir as primeiras imagens a preto e branco.
Não creio que colorir seja um bom termo. Em Ver:Amor, usei o realismo mágico,
não para colorir, mas para analisar a situação sob outro ponto de vista. O romance corresponde a quatro tentativas muito diferentes de escrever sobre a Shoá: do realismo de Momik à corrente de consciência e realismo mágico de Bruno, ao registo quase teatral da relação entre Wasserman e Niegel e, no final, ao estilo enciclopédico ou semicientífico. Havia uma quinta parte, da qual desisti, porque senti que quatro eram suficientes para mostrar a impossibilidade de escrever sobre a Shoá. Sabemos que vamos falhar, mas temos de continuar a tentar. Por vezes, penso que olhar para a Shoá assemelha-se a olhar diretamente para o Sol.
La Rochefoucauld disse que «para o Sol e para a morte, não se olha de frente».
É belíssima a frase. É algo que eu sinto. De uma forma muito forte...Senti-o enquanto escrevia sobre a Shoá e senti-o ao escrever Até ao fim da Terra [ensombrado pela morte do filho, Uri Grossman, de 20 anos, abatido por um míssil do Hezbollah, em agosto de 2006, poucas horas antes do cessar-fogo entre Israel e o Líbano]. Há coisas para as quais não podemos olhar de frente porque nos cegam. ainda assim, porque sou escritor: não fugir à radiação ardente da Shoá ou de um luto pessoal....
O Escritor que escreve sobre a Shoá tem de aceitar que jamais será completamente compreendido pelos outros.
Concordo. E, no entanto, os dos, escritor e leitor, terão sido parceiros na tentativa humana de compreender algo. Não tentaram evitá-lo ou negá-lo. Assumiram esse fardo e toda a tristeza nele envolvida e tentaram olhar a Shoá nos olhos. Foi por isso que escolhi pôr Momik no início do livro, apesar de essa ter sido a última parte a ser escrita. Senti que precisava de captar o modo como uma crança tenta entender a Shoá. Porque, mesmo se formos adultos e tivermos lido todos os livros, visto todos os filmes, estudado todas as abordagens históricas, subsistirá sempre uma pequena parte de nós que, tal como acontece com as crianças, é incapaz de compreender.
Estamos dentro da radiação, mas não conseguimos dar-lhe uma forma?
Perante as perguntas principais, somos crianças indefesas, mesmo que sejamos adultos. Como é que alguém foi capaz de fazer uma coisa assim?
É inegável que pensar a Shoá é um fardo muito particular. Mas não acha que, num certo sentido, é também um ato que envolve algum masoquismo? Escarafunchar na tristeza e no horror, como se sofrêssemos de uma espécie de síndroma do sobrevivente (Elie Wiesel disse: «Estou vivo, logo sou culpado») Quanto mais percebemos que não conseguimos compreender, mais obcecados ficamos.
É verdade. Haverá sempre quem explore esse lado masoquista...Pode-se abusas de tudo, e também da Shoá. Mas...[Silêncio longo.] não há «mas»! Penso que existem três formas de tentar superar este fardo. Uma, é a via científica: procurar compreender como aconteceu. A outra é a das memórias dos nossos sobreviventes. A terceira é a via da arte. Ora, haverá cada vez menos sobreviventes e a via científica extinguir-se-á em breve (são conhecidos praticamente todos os factos que havia para conhecer). A expressão art´stca será a principal forma de gerar empatas nas gerações futuras em relação à Shoá. (pp. 70-71)

"Revsta Ler", Outono 2015, Nº 139

quarta-feira, 9 de março de 2016

Estreia: Hannah Arendt

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Título Original: Hannah Arendt
Com: Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer, Julia Jentsch, Ulrich Noethen, Michael Degen, Victoria Trauttmansdorff, Klaus Pohl, Nicholas Woodeson
Realização: Margarethe von Trotta
Produção: Bettina Brokemper, Johannes Rexin
Autoria: Pamela Katz, Margarethe von Trotta
Ano: 2013
Duração: 109 minutos

Esther Mucznik alerta para sinais do pensamento que levou ao Holocausto

Para quem pensa que "Heil Hitler" é coisa de manuais de história!



Fotografia de uma manifestação da extrema-direita, em Leipzig, a 08/03/2016, onde a saudação nazi "Heil Hitler" foi palavra de ordem.

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