sexta-feira, 29 de abril de 2016

Grácia Nasi

Contrariamente aos Reis Católicos que cumpriram o estipulado, D. Manuel não manteve a sua promessa de deixar sair de Portugal os judeus que o quisessem. A sua decisão, provavelmente já anterior à assinatura do decreto de expulsão, era outra: mantê-los no reino e aos seus «cabedais», não como judeus, mas sim como cristãos. Esperaria D. Manuel uma aceitação voluntária e massiva da conversão por parte dos judeus? Se assim era, enganou-se. Mas nada deteria o rei na sua decisão: numa sexta-feira, a 19 de Março de 1497, muito antes de findar o prazo para a saída, estipulado para Outubro, foi dada ordem de baptismo compulsivo de todas as crianças de quatro a catorze anos no domingo seguinte, dia de Páscoa judaica. Seguindo a táctica de atingir os pais através dos filhos, estes seriam retirados aos seus progenitores para serem educados na fé cristã.
As crianças foram assim arrancadas aos pais em verdadeiros cenários de horror: «Os pais, levados ao desespero, vagavam como dementes, as mães resistiam como leoas. Muitos preferiam matar os filhos com as próprias mãos; sufocavam-nos no último abraço ou atiravam-nos em poços ou rios, suicidando-se em seguida.» Condoídos, muitos cristãos escondiam crianças judias para poupar os pais a tal sofrimento. «Os próprios cristãos», escreve um autor anónimo, «movendo-os a piedade, e em face dos bramidos e choros que os tristes pais e amorosas mães faziam por aqueles pedaços das suas entranhas que, à força, viam arrancar deles sem esperança de mais poder lograr, escondiam e salvavam as crianças». Fernando Coutinho, líder do partido clerical que no Conselho Real se opusera à expulsão, e mais tarde bispo de Silves escreverá uns anos depois: « Vi com os meus próprios olhos como muitos foram arrastados pelos cabelos à pia baptismal, como um pai, com a cabeça encoberta, sob dores e lamentações, acompanhou o seu filho e, de joelhos, clamou ao Todo-Poderoso que fosse testemunha de pai e filho, unidos como professos da lei mosaica, desejarem morrer como mártires do judaísmo. Vi actos ainda mais pavorosos, verdadeiramente incríveis, que lhes foram infligidos.»
Mas o terror das conversões forçadas ainda não acabara. Com a aproximação da data limite para a saída, em Outubro de 1497, três portos, Lisboa, Porto e Algarve foram designados para o embarque. Mas no último momento o rei mudou de opinião, restringindo-o a Lisboa. Cerca de vinte mil judeus juntaram-se então na cidade, sendo conduzidos ao palácio dos Estatus, no Rossio, onde antes de serem alvo de um baptismo colectivo foram sujeitos a todo o tipo de pressões e ameaças. Abraão Saba, médico, que já fora expulso de Castela em 1492 e aquel levaram dois filhos, conta que foram mantidos, nos Estatus, sem comer nem beber durante quatro dias, e que os que conseguiram resistir foram arrastados «pelas barbas e cabelos» até às igrejas, enquanto outros se suicidavam atirando-se das janelas. (pp. 28-30)

Esther Mucznik, Grácia Nasi - A Judia Portuguesa do Século XVI Que Desafiou O Seu Próprio Destino,A Esfera dos Livros, 2010
(brevemente na Biblioteca da Escola)

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