terça-feira, 27 de outubro de 2015

«Requiem por Auschwitz» de Isabel Aguiar


São um requiem por Auschwitz os dedinhos de uma criança
trilhados na porta de um vagão.

Os mortos de Auschwitz
Pedem um requiem
Enquanto plantam flores ao longo dos caminhos.

A Cruz Vermelha comunicou a morte de Etty Hillesum a 15 de Setembro de 1943
O calendário mundial esburacou-se.

Não tiveram direito nem aos calhaus
Sobre a pedra do Túmulo
As mães mais sós do mundo
As mães que não vimos
E por isso falamos na sua vez.



Mães sem vida
Encalhadas as faces nos lugares impuros
Mães da desolação maior do mundo
A chorarem atrás dos muros com arame farpado
Farpas no meu coração.

Editora Licorne, 2014

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A Film Unfinished, Yael Hersonski, 2010



"A Film Unfinished" é um documentário, de 2010, realizado, por Yael Hersonski, a partir da descoberta das imagens não utilizadas num filme de propaganda nazi, sobre o gueto de Varsóvia.

Nelly Sachs (1891-1970)


(Leonie) Nelly Sachs, judia, nasceu em Berlim no dia 10 de Dezembro de 1891. Com a ascensão de Hitler ao poder, em 1940, partiu com a mãe para a Suécia, refugiando-se em Estocolmo, onde viveu desde então. Aí tornou-se tradutora e uma escritora activista em prol de todo o seu povo que era assassinado pelo regime nazi. Em 1966, juntamente com Shmuel Agnon, recebeu o Prémio Nobel da Literatura. 

CORO DOS QUE SE SALVARAM

Nós que nos salvámos,
De cujos ossos ocos a Morte já cortava as suas flautas,
Em cujos tendões a Morte já passava o seu arco -
Os nossos corpos ainda gemem
Com a sua música mutilada.
Nós que nos salvámos,
Ainda pendem os baraços torcidos para os nossos pescoços
Em frente de nós no ar azul -
As ampulhetas ainda se enchem com o nosso sangue gotejante.
Nós que nos salvámos,
Ainda em nós roem os vermes do medo.
A nossa estrela está enterrada no pó.
Nós que nos salvámos
Vos pedimos:
Mostrai-nos devagar o vosso Sol.
Levai-nos a passo de estrela em estrela.
Deixai-nos aprender devagar de novo a vida.
De contrário poderia a canção dum pássaro,
O encher do balde no poço
Fazer rebentar a nossa dor mal selada
E arrastar-nos em espuma -
Nós vos pedimos:
Não nos mostreis ainda um cão que morde -
Poderia ser, poderia ser
Que nos desfizéssemos em pó -
Perante os vossos olhos em pó nos desfizéssemos.
O que é que aguenta ainda inteira a nossa teia?
Nós que nos tornámos sem hálito,
Cuja alma fugiu para Ele da meia-noite
Muito antes de nos terem salvado o corpo
Na arca do momento.
Nós que nos salvámos,
Apertamo-vos a mão,
Reconhecemos o vosso olhar -
Mas só e ainda nos aguenta a despedida,
A despedida no pó
Nos aguenta convosco.

(tradução de Paulo Quintela, in Poemas de Nelly Sachs, Portugália, 1967 - Poetas de Hoje - o original pertence ao seu primeiro livro In den Wohoungen des Todes / Nas Moradas da Morte, de 1946)

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Os homossexuais, as vítimas esquecidas do Holocausto

Para além dos judeus, alvo preferencial dos nazis, também foram vítimas deste regime outros grupos considerados como 'raças inferiores' ou 'parasitas', como é o caso dos ciganos, ou 'a-sociais', por exemplo, as prostitutas, as testemunhas de Jeová, os comunistas e restantes opositores ao regime, os homossexuais. Este último grupo é considerado o mais esquecido, tendo-lhe sido reconhecido o estatuto de vítimas, somente, décadas depois do fim da guerra.
Uma vez que se queria uma sociedade expurgada de toda a ameaça à suposta pureza da 'raça' germânica, foram os homossexuais alemães os principais visados pelo ódio e impulso de destruição nazi. Veja-se, abaixo transcrito, o discurso de Himmler (Quem é?), proferido a 18 de Fevereiro de 1937:

Se eu admitir que existem 1 ou 2 milhões de homossexuais, tal significará que 7%, 8% ou 10% dos homens são homossexuais. E, se a situação não for alterada, o nosso povo será destruído por essa doença contagiosa. A longo prazo, nenhum povo conseguiria resistir a tal perturbação da vida e do equilíbrio sexual [...] Um povo de raça pura que tenha poucas crianças é um povo que tem um pé na cova; dentro de 50 a 100 anos não terá qualquer significado e em duzentos a quinhentos anos extinguir-se-á [...] A homossexualidade reduz todos os resultados a zero e destrói qualquer sistema básico; destrói os próprios alicerces do Estado. Além disso, os homossexuais sofrem de uma doença mental. São fracos e cobardes em matérias fulcrais [...] Temos de compreender que, se este mal continuar a espalhar-se na Alemanha e se não formos capazes de o parar, acabará com a Alemanha. Será o fim do mundo germânico. (http://perso.wanadoo.fr/d-d.natanson)

No entanto, isso não significa que homossexuais de outros países, principalmente os anexados pela Alemanha, não tivessem sido perseguidos e deportados. Pierre Seel, originário da região francesa da Alsácia,  foi deportado, apenas com 17 anos, para o campo de Schirmeck, em resultado de uma denúncia de roubo de um relógio que o próprio fez à polícia. O facto do local do roubo estar identificado como zona de frequência homossexual, foi o suficiente para que Seel fosse incluído na lista de homossexuais. No livro que escreveu, Moi, Pierre Seel, deporté homosexuel, diz: "Nos campos, os homossexuais eram sujeitos às mesmas [relativamente aos outros prisioneiros] privações, brutalidade, trabalhos forçados e experiências médicas, mas o triângulo cor-de-rosa * que usavam, atraía o remoque e infligia sofrimentos ainda maiores. Por vezes eram atirados aos cães dos SS, que os despedaçavam em frente dos restantes detidos."
A maioria das experiências médicas a que eram submetidos consistia numa injecção de hormonas sintéticas ministrada na virilha direita com o suposto objectivo de curar a doença de que eram portadores: a homossexualidade. A consequência destas experiências pseudo-científicas era a morte de grande parte dos estrelas rosa.
Os mais novos eram vistos como mercadoria sexual para uso dos Kapos (Ver aqui) e dos prisioneiros criminosos, os que gozavam de maiores privilégios dentro dos campos. Jean-Michel Lecomte, no seu Ensinar o Holocausto no Século XXI, cita Aimé Spitz, deportado como preso político, mas também ele homossexual: "Um jovem alsaciano do departamento do Alto Reno era disputado por dois Kapos, todos os domingos, um deles dava-lhe uma tigela de sopa e outro um charuto. Em resultado do ciúme dos Kapos, foi enviado certa noite para a enfermaria para ser desinfectado; no dia seguinte foi encontrado morto. Tinham-lhe injectado petróleo nas veias. Tinha apenas 19 anos" (p. 81)


* À semelhança do que acontecia com os judeus, obrigados a usar uma estrela amarela
, também os homossexuais eram obrigados a usar uma estrela identificadora da sua condição de prisioneiros, a estrela cor-de-rosa.

Kapo

Kapo - deportado encarregue de dirigir uma equipa de trabalho nos campos de concentração. Normalmente, era escolhido entre os prisioneiros criminosos, os que mostravam índices de maior resistência e brutalidade, mas nada obstava a que fosse um judeu

domingo, 11 de outubro de 2015

"Contra o Esquecimento" ("Gegen das Vergessen")

"Contra o esquecimento" , "Gegen das Vergessen", é um projecto do fótografo e cineasta Luigi Toscano que integra na sua equipa: a historiadora de arte e gestora cultural Julia Teek e o designer de comunicação Holger Lehman.
Percorrendo cidades como Haifa, Kiev, Moscovo e Washington, o objectivo deste projecto consiste em fotografar vários sobreviventes da perseguição nazi. Cifra-se em milhões o número de vítimas deste regime, mas como diz Helga Weiss no prefácio do seu próprio Diário*, nos números, que aparecem no ecrã de qualquer computador com um simples clique, oculta-se um destino humano, uma história que é preciso descobrir, contar, para não esquecer.




* Livro existente na biblioteca:

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Ao dispôr, na biblioteca





Holocausto

Palavra  hebraica  com raízes helénicas, que  significa «sacrifício». Este termo é geralmente utilizado nos países de expressão anglo-saxónica para designar Shoah. É utilizada para para referir tanto o genocídio* como os crimes contra a humanidade dos nazis e seus aliados, e cujas vítimas não foram unicamente judeus, mas também, Ciganos, homossexuais, pessoas com deficiências físicas e mentais e opositores políticos e religiosos (incluindo Testemunhas de Jeová), bem como os intelectuais e aristocratas polacos, os grupos de civis russos e sérvios que foram massacrados, assim como os habitantes de bastantes aldeias em diferentes locais na Europa. Muitos dos prisioneiros foram vítimas de crimes de guerra, e em particular o destino dos prisioneiros soviéticos enquadra-se na categoria de crime de genocídio contra a humanidade. Fontes credíveis estimam num total de pelo menos 8 milhões o número de vítimas do holocausto, incluindo dois terços da população judaica da Europa.

Genocídio: destruição sistemática de um grupo de pessoas

Adaptado de Ensinar o Holocausto no Século XXI Jean-Michel Lecomte, Via Occidentalis; 2007, p. 28
(livro existente na biblioteca da escola)



segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Mais discriminadores do que gostaríamos?

O vídeo que publicamos dá conta de uma experiência que Anniee Leblanc, professora no Quebec, decidiu realizar com os seus alunos de 9 anos que considera "inteligentes, vivos e criativos".
A experiência, com base em investigações a nível da psicologia social realizadas por Henri Tajfel, sobrevivente dos campos de concentração nazis, replica uma outra aplicada por Jane Elliott, em 1970, em Lowa, numa escola de um meio maioritariamente rural e branco.
A tese defendida é a de que os seres humanos discriminam naturalmente. Para provarem que esta ideia é verdadeira, as experiências propõem a divisão de um determinado grupo em dois, segundo critérios absurdos, mas supostamente validados por crenças científicas (J. Elliott escolheu a cor dos ollhos, os azuis indiciariam uma menor inteligência, A. Leblanc optou pelas alturas, os mais altos/os mais baixos).
Os resultados parecem demonstrar que esta separação introduz uma categorização, "nós-eles"*, suficiente para que os elementos de cada grupo comecem a favorecer-se, em detrimento do outro, criando um efeito de discriminação.

(Pedimos desculpa pela má qualidade das legendas!)



* Econtramos esta categorização no excerto d' O Rapaz do Pijama às Riscas, de John Boyne, livro existente na biblioteca da escola, na estante 'Estudos da Shoah':

- Judeus – disse Bruno, experimentando a palavra. Gostava bastante da maneira como soava. – Judeus – repetiu ele. – Todos os que vivem daquele lado da vedação são judeus.
         - Sim, é isso – disse Gretel.
         - E nós, somos judeus?
         Gretel ficou boquiaberta, como se tivesse acabado de levar um estalo na cara.
         - Não, Bruno – disse ela. – Não, claro que não somos. E tu nem sequer devias dizer uma coisa dessas.
         - Mas porquê? Então, o que é que nós somos?
         - Somos…-começou Gretel, mas depois teve de parar e pensar antes de responder: - Somos…- repetiu ela, mas não estava muito certa de qual seria a resposta a esta pergunta. – Bem, nós não somos judeus – disse ela finalmente.
         - Eu sei que não – disse Bruno frustrado. – O que eu quero saber é: se não somos judeus, então o que é que somos?
         - Somos o oposto – respondeu Gretel muito depressa, parecendo bem mais satisfeita com esta resposta. – Sim, é isso mesmo. Somos o oposto.
         - Está bem – disse Bruno, satisfeito por ter finalmente tudo esclarecido na sua cabeça.- Os opostos vivem deste lado da vedação e os judeus vivem daquele.
         - Isso mesmo, Bruno.
         - Então os judeus não gostam dos opostos?
         - Não, estúpido, somos nós que não gostamos deles.
         Bruno fez cara feia. Já tinham dito vezes sem conta à Gretel que não lhe chamasse estúpido, mas ela continuava.
         - Então, porque é que nós não gostamos deles? – perguntou ele.
         - Porque eles são judeus – disse Gretel.
         - Estou a ver. E os opostos e os judeus não se dão muito bem.

John Boyne, O Rapaz do Pijama Às Riscas, Asa, 2007, pp. 149, 150

Sobre "Se Isto é um Homem", um texto de Anabela Mota Ribeiro

Falamos de desumanidade?, inumanidade? De que falamos quando falamos dos campos de concentração e extermínio e da Segunda Guerra?
Auschwitz foi libertado a 27 de Janeiro de 1945. Primo Levi viu uma brecha nessa madrugada que lhe permitiu pensar no regresso a casa. No livro Se isto é um Homem testemunha a sua vida no campo, que considera “uma gigantesca experiência biológica e social (...) [onde é possível] estabelecer o que é essencial e o que é adquirido no comportamento do animal-homem perante a luta pela vida”.
Fui a Auschwitz-Birkenau e Treblinka em 2007 e reli então o livro de químico italiano.

Antes de mais, uma interrogação: que podemos nós saber acerca daquilo de que fala Primo Levi? Que podemos nós saber e em que termos podemos falar de uma realidade tão radicalmente diferente da nossa que não chegamos sequer a configurar, senão sob um ponto de vista teórico e ainda assim imensamente vago, tacteante, a que é que ela corresponde?
Parece evidente, desde logo, que o nosso olhar é o olhar asséptico de quem observa no conforto das “casas aquecidas”, para usar uma expressão de Primo Levi, por mais horror, asco, incómodo que a descrição ou a visão provoquem. A nossa condição é outra. A nossa galáxia é outra. A sonda que fornece alguma informação está longe de nos fazer experimentar a qualidade daquele ar, de nos indicar sequer as suas propriedades.
E nem algum conhecimento de alguns dos conteúdos em causa nos ajuda. Justamente: são conteúdos, não são experiências.
(Há um quadro de Gauguin que traduz numa imagem o que pretendo dizer. É um retrato de Van Gogh, que data do período que os dois pintores passaram em Arles, no qual se vê o pintor holandês a pintar, não numa tela, mas directamente sobre um ramo de flores. A peculiaridade e a força de Van Gogh era pintar directamente a vida, e não sobre a vida.)
Apesar de serem conhecidas as imagens do horror, ele não deixa de nos impressionar brutalmente quando estamos na sua presença. A imagem das escovas, milhões de escovas, amontoadas em Auschwitz, fere-nos quando está ante os nossos olhos. Como se chegássemos mais perto de perceber ou sentir o que aquilo é. Aquela já não é uma fotografia que passou pelas nossas mãos. Aquelas são escovas, que fazem um determinado volume, que correspondem a um determinado número, que pertenceram a concretas pessoas, e que têm, digamos, uma existência mais concreta ante os nossos olhos. Mas continua a existir entre nós e elas uma parede de vidro. Uma forma de impermeabilização e de incompreensão. Sobretudo, nenhuma daquelas escovas é nossa, foi nossa. Não fomos expropriados dela.
Primo Levi escreve: “Perguntei-lhe (com uma ingenuidade que poucos dias depois já me devia parecer fabulosa) se nos iam devolver pelo menos as escovas de dentes; ele não riu, mas com uma expressão de extremo desprezo no rosto, disse-me: – Vous n’êtes pas à la maison.”
Estar privado da escova de dentes significa começar a estar privado de uma identidade. É um sinal de se estar longe de casa.
Nós estamos em casa.
Podemos inventariar episódios de humilhação, privação, violência que se convencionou inumana. Mas será que podemos, mutatis mutandis, reconhecendo a diferença de escala, ter uma ideia do que ali se passou? Não acabaremos por constatar que todas as situações por que passámos, apesar da sua penosidade, continuam a inscrever-se naquilo que é da esfera do humano?
O que é que caracteriza essa esfera? Quem delimita o alcance dessa esfera?
Mas se é verdade, parafraseando Antígona, que “o homem nada sabe sem queimar os seus pés no fogo ardente”, é igualmente verdade, e concordando com Levi, que a realidade não pode ser ignorada. Não podemos fazer de conta que não vimos as escovas amontoadas. Presencialmente. Em fotografia. Desde os massacres de judeus, ciganos e comunistas a partir de 1941 na antiga União Soviética, desde o gueto de Varsóvia e Treblinka, desde Auschwitz, sabemos de uma maneira diferente aquilo de que o homem é capaz. Os relatos de Tadeusz Borowski (This Way to the Gas, Ladies and Gentlemen), de Primo Levi (Se Isto É Um Homem), de Vasily Grossman (Life and Destiny ou A Writer at War) tornam possível pensar o que ali aconteceu.
Não acordamos para o sonho da maldade humana com a Shoah. A Shoah confirma certo pensamento que falava do gosto do humano pelo sofrimento alheio. Mas surpreende, e isso é talvez novo na Shoah, que o inominável tenha sido perpetrado por um povo altamente civilizado, sofisticado, culto, que estava desde sempre na vanguarda da literatura, da música, do pensamento. E o método com que esse horror foi levado a cabo – sob a exímia e “pedante” (novamente Levi) organização alemã. E o facto de ser um calvário que dizimou famílias, uma comunidade, um povo, e não um calvário individual.    
Primo Levi, como Borowski, como Semprún, foram capazes, nas mais anti-humanas situações, de que Auschwitz-Birkenau paradigmaticamente são uma representação, de elaborar um discurso humano sobre o anti-humano. Um discurso baseado no que de mais humano o homem tem – isto é, na capacidade de narrar.
Levi apela à memória, dirige imprecações aos que a corrompem ou ignoram:

«Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as [estas palavras] aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.»

Primo Levi nasceu em Itália em 1919, morreu em 1987, provavelmente por suicídio. Licenciado em Química. Membro de uma brigada de partigiani, filiada no grupo «Justiça e Liberdade». Os partigiani eram resistentes armados contra os nazis-fascistas em Itália.
Devido a ser judeu, é preso e deportado para o campo de concentração de Auschwitz em Dezembro de 43, no qual permanece até ao fim da Guerra, em Janeiro de 45. Fica, portanto, pouco mais de um ano. É dos poucos que aguentam tanto tempo. No começo do livro, começa por aludir à «sorte» que lhe assiste ao ser capturado numa altura em que os alemães, devido à escassez de mão-de-obra, decidem prolongar a vida dos prisioneiros, suspendendo as execuções arbitrárias.
Há outro aspecto: é dos poucos a resistir às condições de vida do campo de concentração. O tempo máximo rondava os três meses, após o qual os homens soçobravam devida à fadiga, à fome e ao frio. Tem 24 anos quando é capturado.
Se Isto É Um homem é o relato da experiência vivida em Auschwitz. Como explica na introdução, a génese do livro tem dois motivos:
  1. «O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade; em primeiro lugar, como libertação interior»
  2. «Foi escrito para fornecer documentos para um estudo sereno de alguns aspectos da alma humana»
Começa a ser escrito logo depois da sua libertação e concluído em 1947. A primeira edição data desse mesmo ano.
O livro é um testemunho, escrito com crueza implacável, sobre a condição humana. Nele se pergunta dos limites que a definem. Da natureza que a constitui. Dos inesgotáveis recursos de que o homem dispõe e que não adivinha em circunstâncias normais.
Mas ainda que os recursos físicos o façam subsistir, que humanidade há nisso? Que subsistência é essa? A de um homem? Repete-se ao longo do livro que pode ser qualquer outra coisa, um animal, um farrapo, uma sombra, mas raramente se utiliza a palavra homem.
Página a página é possível assistir à desumanização progressiva vivida por Primo Levi e demais prisioneiros. À bestialidade que conquista, dia após dia, o espaço que se julgava inviolável e pertença do homem.
Mas o que é um homem?
A pergunta é feita de outro modo: Se isto é um Homem. Como se não pudéssemos ter alguma vez uma definição de homem. Mas pudéssemos saber com certeza aquilo que está excluído da condição humana.
Ainda antes de ser iniciada a narração, há um poema que abre o livro, justamente intitulado “Se isto é um homem”:

“Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não
Considerai se isto é uma mulher
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
(...)
Recomendo-vos estas palavras
Esculpi-as no vosso coração”

Neste poema começa-se por descrever uma situação de normalidade: tranquilidade, casas aquecidas, rostos amigos. De seguida, assenta-se a descrição naquilo que consome a “vida humana” dos prisioneiros; ou seja, aquilo que os faz deixar de ser humanos: a lama, a ausência de paz, a luta desenfreada pela sobrevivência, o número tatuado no braço, pelo qual passam a ser conhecidos, e que renega o nome, a identidade. “O meu nome é 174 517.”
Isto que é aqui enunciado é escalpelizado ao longo do livro em passagens sucessivas.
Logo no momento em que entram para o “vagão de mercadoria”, pergunta-se quantas peças ali constam. Peças. Quando se embarca nestes vagões, abundam os relatos do destino que os espera, sabe-se o que aquilo significa. O que os espera é a desesperança. “Ai de vós, almas perdidas” é um verso da Divina Comédia utilizado por Primo Levi para sucintamente apresentar a situação.
A incursão na obra de Dante acontece, aliás, outras vezes. Como num dos excertos mais famosos: “Isto é o Inferno. Hoje, nos nossos dias, o Inferno deve ser assim, um local grande e vazio, e nós, cansados de estar de pé, com uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem dúvida terrível e nada pode acontecer e continua a não acontecer nada. Como pensar? Já não se pode pensar, é como estar já morto. O tempo passa gota a gota”.
Curiosamente é também a privação, expressa no poema e traduzida em pancadas, frio, sede que não deixa que se afundem no vazio de um desespero sem fim. Levi explicita que é a privação, e “não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: pois são poucos os homens capazes disso”.
Despojados de tudo, da sua vida quotidiana, da sua identidade, da possibilidade de se pensarem intimamente como homens livres, são sustidos, paradoxalmente, por um lado puramente físico, animal, que os impele à sobrevivência. Uma sobrevivência animal, e não uma sobrevivência humana. Porque esta requer um sentido, uma meta, um futuro. “A persuasão de que a vida tem uma finalidade está enraizada em todas as fibras do homem, é uma propriedade da substância humana. Os homens livres dão a esta finalidade muitos nomes, e sobre a sua natureza muito se debruçam e discutem; mas para nós a questão é mais simples. Agora e aqui, a nossa finalidade é chegar à Primavera”.
O campo é a ausência de futuro, a arbitrariedade a toldar a liberdade. “Pela primeira vez apercebemo-nos de que a nossa língua carece de palavras para exprimir esta ofensa: a destruição de um homem. (...) Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão, e se nos escutassem, não nos perceberiam”.
O homem de que aqui se fala é um homem reduzido ao sofrimento, à carência, esquecido da dignidade. Vive num campo de extermínio onde rapidamente aprende que tudo serve. Aprende, por exemplo, o valor dos alimentos. Percebe-se isso quando se sabe que o pão é comido com a marmita por baixo para não desperdiçar as migalhas. O pão é a única moeda de troca entre os prisioneiros. Meia ração de pão pode trocar-se por um litro de sopa. Ou por nabos, cenouras, batatas, colheres com cabo afiado que fazem de faca. É isto que se comercia no campo.
Esta é a vida que têm. Até quando? “O problema do futuro longínquo esmoreceu, perdeu qualquer intensidade diante dos problemas bem mais pungentes e concretos do futuro próximo: quanto haverá para comer hoje, se irá nevar”.
A vida que têm é a vida de animais. Mas justamente por isso, como percebe o autor, “porque o campo é uma máquina para nos reduzir a animais, não devemos tornar-nos animais; neste lugar também se pode sobreviver para contar, para testemunhar. (...) Somos escravos, condenados quase com certeza à morte, mas restou-nos uma última faculdade: a faculdade de negar o nosso consentimento”.
A vida de todos os dias destes prisioneiros é a de autómatos que partem em marcha: as suas almas estão mortas. Pensar sobre o que lhes aconteceu é algo que só acontece quando, por exemplo, se está na enfermaria. “Fala-se de outras coisas para além da fome e do trabalho, e acontece-nos considerar ao que nos reduziram, quanto nos tiraram, o que é esta vida. Aprendemos que a nossa personalidade é frágil, está muito mais ameaçada do que a nossa vida.”
Por vezes, os prisioneiros sonham. Não sonham todas as noites, mas apenas quando o cansaço o permite. E nos sonhos há também margem para um não-acreditar. Um relato: “É um prazer imenso, estar na minha casa, entre pessoas amigas e ter tantas coisas para contar. Mas não posso deixar de me aperceber de que os meus ouvintes não me prestam atenção”. A dor deste sonho (que é a dor de contar e não ser ouvido) é uma dor que acompanha não só Primo Levi como muitos outros. Uma espécie de sonho insistente. Também sonham que estão a comer.
“Se pudéssemos chorar!” desabafa, dizendo-se a seguir “um verme sem alma”. Ora um verme não chora. Um verme não chora porque não tem consciência da ofensa que lhe infligem. Se tivesse nem que fosse uma sombra dessa consciência, compreenderia valores como o da dignidade, respeito, individualidade. E nesse caso, todo o campo se lhe tornaria insustentável. No campo só se sobrevive na condição de animal acossado. Pela mesma razão, no campo não há uma meta. O futuro não existe. A ideia de que a vida tem uma finalidade é “propriedade da substância humana”.
Entre estes homens é possível estabelecer uma distinção: não entre bons e maus, mas entre os que sucumbem e os que se salvam. O bom e o mau, o cobarde e o corajoso – todas essas combinações são variáveis em cada um deles, mas presentes em todos. Como cá fora. O que os marca, definitivamente, é a sua capacidade física e moral de sobreviver ou não.
Esta distinção é igualmente ditada pela sua serventia. Os fracos e ineptos são votados à selecção, ou seja, à morte. Os que ainda têm forças e competência são poupados e obrigados a trabalhar.
Vantagem é um conceito fundamental. Quem tem vantagem sobre quem, qual a vantagem em manter vivo alguém. Os outros, morrem sem deixar rasto na memória de ninguém. Estes são os ineptos, aqueles são os proeminentes.
Um aspecto raramente revelado nos filmes e literatura sobre a Segunda Guerra é o da situação de rivalidade e de ódio entre os oprimidos. Primo Levi explica que isso acontece por ser urgente sobreviver: “É preciso lutar contra a corrente, dar batalha à fadiga, à fome, ao frio, não ter piedade dos rivais, aguçar a inteligência, endurecer a paciência”.
É uma luta esgotante de um contra todos. “As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem. (...) Um homem é o que mantém pura a sua humanidade”.
Mas, a despeito da fome, da fadiga, da dor, não haverá réstia de esperança? A resposta pode ler-se neste excerto: “Se no ano passado nos tivessem dito que iríamos ver mais um Inverno no campo, ter-nos-íamos atirado contra o arame farpado electrificado, e mesmo agora o faríamos se fôssemos lógicos, se não fosse este insensato e louco resíduo de esperança inconfessável”.
O arame farpado electrificado é sempre uma possibilidade. A via do suicídio é sempre uma possibilidade. Mas curiosamente foram poucos aqueles que a escolheram. O processo de bestialização de que são alvo no campo de concentração condu-los a um estado de indiferença. Levi descreve esse movimento e diz que muitos enfrentariam a morte com a mesma indiferença. Para se espernear perante a morte, é preciso estar ainda suficientemente vivo. E aqueles, e aquele prisioneiro que nos deixa este testemunho, confessam: “Já não sou bastante vivo para ser capaz de pôr termo à minha vida”. Já não restam forças para a indignação.
Primo Levi e um pequeno grupo de prisioneiros foram libertados pelos russos no fim da Guerra. Tinham sabido adaptar-se ao campo. Levi, formado em Química, foi poupado por mor de um trabalho num laboratório. Foi assim que foi salvo do gigantesco processo de selecção do último Outubro da Guerra que matou milhares e milhares de judeus. Por fim, em vésperas da chegada dos russos, adoeceu seriamente e foi internado na enfermaria. Por essa razão também se salvou.
Na madrugada de 27 de Janeiro é libertado. “A brecha no arame farpado significava não mais alemães, não mais selecções, não trabalho, não pancadas, não chamadas, e talvez, mais tarde, o regresso”.


Publicado originalmente no Público em 2015

 Retirado daqui

"Se isto é um blog"



SE ISTO É UM HOMEM

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz 
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar 
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Primo Levi, SE ISTO É UM HOMEM, Dom Quixote, 11ª ed., 2013, p. 7

"Se isto é um blog", título inspirado na obra de Primo Levi, Se Isto É Um Homem*, surge como meio de apresentar os trabalhos realizados no âmbito dos Estudos sobre o Holocausto/Shoah.
O Holocausto, Shoah, tem vindo a ser objecto de estudo, nesta escola,  desde 2006/07, ano lectivo em que o professor Luís Filipe Bettencourt o introduziu sob a forma de leituras orientadas à volta de duas obras A Noite, de Elie Wiesel, e Austerlitz, de W. G. Sebald.
 Desde então, reflecte-se sobre a Shoah tanto em momentos que assinalam o Dia Internacional de Comemoração em Memória das Vítimas do Holocausto, a 27 de Janeiro de cada ano, lembrando a data em que Auschwitz foi libertado, como em trabalhos realizados em diferentes disciplinas, Filosofia ou Área de Projecto (actualmente extinta), ou mesmo enquanto lema dos Encontros Filosóficos, como aconteceu no ano lectivo de xxxx. Coligidos esses trabalhos, quiseram alguns dos professores directamente responsáveis por eles que não fossem enterrados em arquivos mortuários, mas que se tornassem semente e crescessem como campo frutuoso de investigação. Neste sentido, no passado ano lectivo foi criada uma estante que se lhe destina e acolhe dignamente todo o material que ao tema diga respeito.
Paralelo a tal esforço, a direcção da Escola decidiu  formalizar esta vontade no tópico "Estudos do Holocausto", proposta que foi lançada a toda a comunidade docente para preenchimento das suas actividades não lectivas. Ao repto terão respondido duas professoras, Ana Gonçalves e Ana Inácio, que se tornaram nas respectivas coordenadoras.
Finalmente, repetindo esse mesmo repto e alargando-o a toda a comunidade educativa, quem estiver interessado em ler obra histórica ou literária, ver filme/documentário, desenvolver trabalho/ensaio (a temática usufrui de largo espectro que contempla todas as áreas curriculares) sobre o assunto, apareça na biblioteca da escola, todas as terças e quintas das 15.15 às 16.45 horas, onde estarão as coordenadoras.

Ana Gonçalves e Ana Inácio





* Se Isto É Um Homem  foi obra primeiramente rejeitada pela editora Einaudi, tendo sido um corajoso pequeno editor a publicá-la. Corria o ano de 1947 e foram apenas vendidos 1500 exemplares, número muito longe de traduzir a importância que hoje lhe atribuímos. O  seu reconhecimento só viria a ocorrer onze anos mais tarde, em 1958, quando, finalmente a Einaudi decide pegar nela para a publicar em grande, traduzindo-a para a língua inglesa e, posteriormente, para muitas outras línguas, fazendo dela o clássico que  conhecemos.