Falamos de desumanidade?, inumanidade? De que falamos quando falamos dos campos de concentração e extermínio e da Segunda Guerra?
Auschwitz foi libertado a 27 de Janeiro de 1945. Primo Levi viu uma brecha nessa madrugada que lhe permitiu pensar no regresso a casa. No livro Se isto é um Homem testemunha a sua vida no campo, que considera “uma gigantesca experiência biológica e social (...) [onde é possível] estabelecer o que é essencial e o que é adquirido no comportamento do animal-homem perante a luta pela vida”.
Fui a Auschwitz-Birkenau e Treblinka em 2007 e reli então o livro de químico italiano.
Antes de mais, uma interrogação: que podemos nós saber acerca daquilo de que fala Primo Levi? Que podemos nós saber e em que termos podemos falar de uma realidade tão radicalmente diferente da nossa que não chegamos sequer a configurar, senão sob um ponto de vista teórico e ainda assim imensamente vago, tacteante, a que é que ela corresponde?
Parece evidente, desde logo, que o nosso olhar é o olhar asséptico de quem observa no conforto das “casas aquecidas”, para usar uma expressão de Primo Levi, por mais horror, asco, incómodo que a descrição ou a visão provoquem. A nossa condição é outra. A nossa galáxia é outra. A sonda que fornece alguma informação está longe de nos fazer experimentar a qualidade daquele ar, de nos indicar sequer as suas propriedades.
E nem algum conhecimento de alguns dos conteúdos em causa nos ajuda. Justamente: são conteúdos, não são experiências.
(Há um quadro de Gauguin que traduz numa imagem o que pretendo dizer. É um retrato de Van Gogh, que data do período que os dois pintores passaram em Arles, no qual se vê o pintor holandês a pintar, não numa tela, mas directamente sobre um ramo de flores. A peculiaridade e a força de Van Gogh era pintar directamente a vida, e não sobre a vida.)
Apesar de serem conhecidas as imagens do horror, ele não deixa de nos impressionar brutalmente quando estamos na sua presença. A imagem das escovas, milhões de escovas, amontoadas em Auschwitz, fere-nos quando está ante os nossos olhos. Como se chegássemos mais perto de perceber ou sentir o que aquilo é. Aquela já não é uma fotografia que passou pelas nossas mãos. Aquelas são escovas, que fazem um determinado volume, que correspondem a um determinado número, que pertenceram a concretas pessoas, e que têm, digamos, uma existência mais concreta ante os nossos olhos. Mas continua a existir entre nós e elas uma parede de vidro. Uma forma de impermeabilização e de incompreensão. Sobretudo, nenhuma daquelas escovas é nossa, foi nossa. Não fomos expropriados dela.
Primo Levi escreve: “Perguntei-lhe (com uma ingenuidade que poucos dias depois já me devia parecer fabulosa) se nos iam devolver pelo menos as escovas de dentes; ele não riu, mas com uma expressão de extremo desprezo no rosto, disse-me: – Vous n’êtes pas à la maison.”
Estar privado da escova de dentes significa começar a estar privado de uma identidade. É um sinal de se estar longe de casa.
Podemos inventariar episódios de humilhação, privação, violência que se convencionou inumana. Mas será que podemos, mutatis mutandis, reconhecendo a diferença de escala, ter uma ideia do que ali se passou? Não acabaremos por constatar que todas as situações por que passámos, apesar da sua penosidade, continuam a inscrever-se naquilo que é da esfera do humano?
O que é que caracteriza essa esfera? Quem delimita o alcance dessa esfera?
Mas se é verdade, parafraseando Antígona, que “o homem nada sabe sem queimar os seus pés no fogo ardente”, é igualmente verdade, e concordando com Levi, que a realidade não pode ser ignorada. Não podemos fazer de conta que não vimos as escovas amontoadas. Presencialmente. Em fotografia. Desde os massacres de judeus, ciganos e comunistas a partir de 1941 na antiga União Soviética, desde o gueto de Varsóvia e Treblinka, desde Auschwitz, sabemos de uma maneira diferente aquilo de que o homem é capaz. Os relatos de Tadeusz Borowski (This Way to the Gas, Ladies and Gentlemen), de Primo Levi (Se Isto É Um Homem), de Vasily Grossman (Life and Destiny ou A Writer at War) tornam possível pensar o que ali aconteceu.
Não acordamos para o sonho da maldade humana com a Shoah. A Shoah confirma certo pensamento que falava do gosto do humano pelo sofrimento alheio. Mas surpreende, e isso é talvez novo na Shoah, que o inominável tenha sido perpetrado por um povo altamente civilizado, sofisticado, culto, que estava desde sempre na vanguarda da literatura, da música, do pensamento. E o método com que esse horror foi levado a cabo – sob a exímia e “pedante” (novamente Levi) organização alemã. E o facto de ser um calvário que dizimou famílias, uma comunidade, um povo, e não um calvário individual.
Primo Levi, como Borowski, como Semprún, foram capazes, nas mais anti-humanas situações, de que Auschwitz-Birkenau paradigmaticamente são uma representação, de elaborar um discurso humano sobre o anti-humano. Um discurso baseado no que de mais humano o homem tem – isto é, na capacidade de narrar.
Levi apela à memória, dirige imprecações aos que a corrompem ou ignoram:
«Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as [estas palavras] aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.»
Primo Levi nasceu em Itália em 1919, morreu em 1987, provavelmente por suicídio. Licenciado em Química. Membro de uma brigada de partigiani, filiada no grupo «Justiça e Liberdade». Os partigiani eram resistentes armados contra os nazis-fascistas em Itália.
Devido a ser judeu, é preso e deportado para o campo de concentração de Auschwitz em Dezembro de 43, no qual permanece até ao fim da Guerra, em Janeiro de 45. Fica, portanto, pouco mais de um ano. É dos poucos que aguentam tanto tempo. No começo do livro, começa por aludir à «sorte» que lhe assiste ao ser capturado numa altura em que os alemães, devido à escassez de mão-de-obra, decidem prolongar a vida dos prisioneiros, suspendendo as execuções arbitrárias.
Há outro aspecto: é dos poucos a resistir às condições de vida do campo de concentração. O tempo máximo rondava os três meses, após o qual os homens soçobravam devida à fadiga, à fome e ao frio. Tem 24 anos quando é capturado.
Se Isto É Um homem é o relato da experiência vivida em Auschwitz. Como explica na introdução, a génese do livro tem dois motivos:
- «O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade; em primeiro lugar, como libertação interior»
- «Foi escrito para fornecer documentos para um estudo sereno de alguns aspectos da alma humana»
Começa a ser escrito logo depois da sua libertação e concluído em 1947. A primeira edição data desse mesmo ano.
O livro é um testemunho, escrito com crueza implacável, sobre a condição humana. Nele se pergunta dos limites que a definem. Da natureza que a constitui. Dos inesgotáveis recursos de que o homem dispõe e que não adivinha em circunstâncias normais.
Mas ainda que os recursos físicos o façam subsistir, que humanidade há nisso? Que subsistência é essa? A de um homem? Repete-se ao longo do livro que pode ser qualquer outra coisa, um animal, um farrapo, uma sombra, mas raramente se utiliza a palavra homem.
Página a página é possível assistir à desumanização progressiva vivida por Primo Levi e demais prisioneiros. À bestialidade que conquista, dia após dia, o espaço que se julgava inviolável e pertença do homem.
A pergunta é feita de outro modo: Se isto é um Homem. Como se não pudéssemos ter alguma vez uma definição de homem. Mas pudéssemos saber com certeza aquilo que está excluído da condição humana.
Ainda antes de ser iniciada a narração, há um poema que abre o livro, justamente intitulado “Se isto é um homem”:
“Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem morre por um sim ou por um não
Considerai se isto é uma mulher
Sem mais força para recordar
Recomendo-vos estas palavras
Esculpi-as no vosso coração”
Neste poema começa-se por descrever uma situação de normalidade: tranquilidade, casas aquecidas, rostos amigos. De seguida, assenta-se a descrição naquilo que consome a “vida humana” dos prisioneiros; ou seja, aquilo que os faz deixar de ser humanos: a lama, a ausência de paz, a luta desenfreada pela sobrevivência, o número tatuado no braço, pelo qual passam a ser conhecidos, e que renega o nome, a identidade. “O meu nome é 174 517.”
Isto que é aqui enunciado é escalpelizado ao longo do livro em passagens sucessivas.
Logo no momento em que entram para o “vagão de mercadoria”, pergunta-se quantas peças ali constam. Peças. Quando se embarca nestes vagões, abundam os relatos do destino que os espera, sabe-se o que aquilo significa. O que os espera é a desesperança. “Ai de vós, almas perdidas” é um verso da Divina Comédia utilizado por Primo Levi para sucintamente apresentar a situação.
A incursão na obra de Dante acontece, aliás, outras vezes. Como num dos excertos mais famosos: “Isto é o Inferno. Hoje, nos nossos dias, o Inferno deve ser assim, um local grande e vazio, e nós, cansados de estar de pé, com uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem dúvida terrível e nada pode acontecer e continua a não acontecer nada. Como pensar? Já não se pode pensar, é como estar já morto. O tempo passa gota a gota”.
Curiosamente é também a privação, expressa no poema e traduzida em pancadas, frio, sede que não deixa que se afundem no vazio de um desespero sem fim. Levi explicita que é a privação, e “não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: pois são poucos os homens capazes disso”.
Despojados de tudo, da sua vida quotidiana, da sua identidade, da possibilidade de se pensarem intimamente como homens livres, são sustidos, paradoxalmente, por um lado puramente físico, animal, que os impele à sobrevivência. Uma sobrevivência animal, e não uma sobrevivência humana. Porque esta requer um sentido, uma meta, um futuro. “A persuasão de que a vida tem uma finalidade está enraizada em todas as fibras do homem, é uma propriedade da substância humana. Os homens livres dão a esta finalidade muitos nomes, e sobre a sua natureza muito se debruçam e discutem; mas para nós a questão é mais simples. Agora e aqui, a nossa finalidade é chegar à Primavera”.
O campo é a ausência de futuro, a arbitrariedade a toldar a liberdade. “Pela primeira vez apercebemo-nos de que a nossa língua carece de palavras para exprimir esta ofensa: a destruição de um homem. (...) Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão, e se nos escutassem, não nos perceberiam”.
O homem de que aqui se fala é um homem reduzido ao sofrimento, à carência, esquecido da dignidade. Vive num campo de extermínio onde rapidamente aprende que tudo serve. Aprende, por exemplo, o valor dos alimentos. Percebe-se isso quando se sabe que o pão é comido com a marmita por baixo para não desperdiçar as migalhas. O pão é a única moeda de troca entre os prisioneiros. Meia ração de pão pode trocar-se por um litro de sopa. Ou por nabos, cenouras, batatas, colheres com cabo afiado que fazem de faca. É isto que se comercia no campo.
Esta é a vida que têm. Até quando? “O problema do futuro longínquo esmoreceu, perdeu qualquer intensidade diante dos problemas bem mais pungentes e concretos do futuro próximo: quanto haverá para comer hoje, se irá nevar”.
A vida que têm é a vida de animais. Mas justamente por isso, como percebe o autor, “porque o campo é uma máquina para nos reduzir a animais, não devemos tornar-nos animais; neste lugar também se pode sobreviver para contar, para testemunhar. (...) Somos escravos, condenados quase com certeza à morte, mas restou-nos uma última faculdade: a faculdade de negar o nosso consentimento”.
A vida de todos os dias destes prisioneiros é a de autómatos que partem em marcha: as suas almas estão mortas. Pensar sobre o que lhes aconteceu é algo que só acontece quando, por exemplo, se está na enfermaria. “Fala-se de outras coisas para além da fome e do trabalho, e acontece-nos considerar ao que nos reduziram, quanto nos tiraram, o que é esta vida. Aprendemos que a nossa personalidade é frágil, está muito mais ameaçada do que a nossa vida.”
Por vezes, os prisioneiros sonham. Não sonham todas as noites, mas apenas quando o cansaço o permite. E nos sonhos há também margem para um não-acreditar. Um relato: “É um prazer imenso, estar na minha casa, entre pessoas amigas e ter tantas coisas para contar. Mas não posso deixar de me aperceber de que os meus ouvintes não me prestam atenção”. A dor deste sonho (que é a dor de contar e não ser ouvido) é uma dor que acompanha não só Primo Levi como muitos outros. Uma espécie de sonho insistente. Também sonham que estão a comer.
“Se pudéssemos chorar!” desabafa, dizendo-se a seguir “um verme sem alma”. Ora um verme não chora. Um verme não chora porque não tem consciência da ofensa que lhe infligem. Se tivesse nem que fosse uma sombra dessa consciência, compreenderia valores como o da dignidade, respeito, individualidade. E nesse caso, todo o campo se lhe tornaria insustentável. No campo só se sobrevive na condição de animal acossado. Pela mesma razão, no campo não há uma meta. O futuro não existe. A ideia de que a vida tem uma finalidade é “propriedade da substância humana”.
Entre estes homens é possível estabelecer uma distinção: não entre bons e maus, mas entre os que sucumbem e os que se salvam. O bom e o mau, o cobarde e o corajoso – todas essas combinações são variáveis em cada um deles, mas presentes em todos. Como cá fora. O que os marca, definitivamente, é a sua capacidade física e moral de sobreviver ou não.
Esta distinção é igualmente ditada pela sua serventia. Os fracos e ineptos são votados à selecção, ou seja, à morte. Os que ainda têm forças e competência são poupados e obrigados a trabalhar.
Vantagem é um conceito fundamental. Quem tem vantagem sobre quem, qual a vantagem em manter vivo alguém. Os outros, morrem sem deixar rasto na memória de ninguém. Estes são os ineptos, aqueles são os proeminentes.
Um aspecto raramente revelado nos filmes e literatura sobre a Segunda Guerra é o da situação de rivalidade e de ódio entre os oprimidos. Primo Levi explica que isso acontece por ser urgente sobreviver: “É preciso lutar contra a corrente, dar batalha à fadiga, à fome, ao frio, não ter piedade dos rivais, aguçar a inteligência, endurecer a paciência”.
É uma luta esgotante de um contra todos. “As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem. (...) Um homem é o que mantém pura a sua humanidade”.
Mas, a despeito da fome, da fadiga, da dor, não haverá réstia de esperança? A resposta pode ler-se neste excerto: “Se no ano passado nos tivessem dito que iríamos ver mais um Inverno no campo, ter-nos-íamos atirado contra o arame farpado electrificado, e mesmo agora o faríamos se fôssemos lógicos, se não fosse este insensato e louco resíduo de esperança inconfessável”.
O arame farpado electrificado é sempre uma possibilidade. A via do suicídio é sempre uma possibilidade. Mas curiosamente foram poucos aqueles que a escolheram. O processo de bestialização de que são alvo no campo de concentração condu-los a um estado de indiferença. Levi descreve esse movimento e diz que muitos enfrentariam a morte com a mesma indiferença. Para se espernear perante a morte, é preciso estar ainda suficientemente vivo. E aqueles, e aquele prisioneiro que nos deixa este testemunho, confessam: “Já não sou bastante vivo para ser capaz de pôr termo à minha vida”. Já não restam forças para a indignação.
Primo Levi e um pequeno grupo de prisioneiros foram libertados pelos russos no fim da Guerra. Tinham sabido adaptar-se ao campo. Levi, formado em Química, foi poupado por mor de um trabalho num laboratório. Foi assim que foi salvo do gigantesco processo de selecção do último Outubro da Guerra que matou milhares e milhares de judeus. Por fim, em vésperas da chegada dos russos, adoeceu seriamente e foi internado na enfermaria. Por essa razão também se salvou.
Na madrugada de 27 de Janeiro é libertado. “A brecha no arame farpado significava não mais alemães, não mais selecções, não trabalho, não pancadas, não chamadas, e talvez, mais tarde, o regresso”.
Publicado originalmente no Público em 2015