quarta-feira, 2 de novembro de 2016

«O comboio do Luxemburgo»

Vivemos tempos conturbados e assistimos diariamente ao drama dos refugiados sírios e de todos os que, tentando fugir da guerra e da morte, procuram desesperadamente chegar à Europa. Infelizmente nada disto é novo e, ciclicamente, quando lutas pelo poder, questões ditas religiosas ou étnicas e interesses económicos se sobrepõem aos interesses da Humanidade, a guerra alastra, e todos os que se vêem envolvidos por esse turbilhão de morte e destruição querem escapar dele a qualquer custo.
Foi assim, na década de 1990, com os refugiados bósnios e foi assim com a perseguição aos arménios, já na segunda década do século XX, século dos refugiados, como assinalou Hannah Arendt, ao referir-se aos judeus e a outros perseguidos pela Alemanha nazi, situação que se intensificou exponencialmente após a invasão da Europa pelos alemães, entre Maio e Junho de 1940.
Portugal - apesar de viver então em ditadura - tentou manter durante quase todo o conflito mundial uma estrita neutralidade. Lisboa, de onde partiam o Clipper para Nova Iorque e navios para quase todo o mundo, tornou-se no destino mais desejado para quem fugia aos horrores da guerra e do nazismo. O governo português, à semelhança do que era feito então noutros países - e à semelhança do que hoje se continua a fazer em toda a Europa - tentou controlar ao máximo a entrada de refugiados em Portugal, enviando para os seus consulados várias circulares que restringiam a emissão de vistos no país, e estes eram apenas de trânsito provisório e nunca de exílio definitivo.
Mas, nem sempre as coisas correm como se espera e a actuação pontual de vários diplomatas e, sobretudo, a desobediência de Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus - que ignorou as ordens recebidas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ou seja, de Salazar -, levaram a que nas últimas semanas de Junho de 1940 chegassem diariamente às fronteiras portuguesas milhares de pessoas com vistos para Portugal. Alertado pelas autoridades inglesas e espanholas para este estado de coisas e temendo não conseguir lidar com uma situação caótica para a qual não estava preparado, o governo português tomou várias providências, de que resultaram o encerramento da fronteira espanhola de Irun, bem como provisoriamente da portuguesa de Vilar Formoso, e a anulação dos vistos emitidos por Sousa Mendes.
A vinda de comboios, organizados com o apoio da Gestapo, provenientes do Luxemburgo com refugiados judeus, entre Agosto e Outubro desse ano de 1940, veio depois a criar sobressaltos entre a PVDE e o governo português, já que muitos dos passageiros vinham indocumentados ou não possuíam vistos válidos para embarcar em Portugal com destino a outras paragens. No entanto, o esforço das organizações judaicas a actuar em Lisboa acabou por conseguir fazê-los entrar no país.
Contudo, em Novembro de 1940, um terceiro comboio proveniente do Luxemburgo trazendo a bordo cerca de 300 judeus e escoltado por membros armados da Gestapo não teve a mesma sorte. Impedidos de pisar solo português (...) estas pessoas ficaram cerca de dez dias encerradas nas carruagens, sob um frio intenso e alimentando-se do que a população pobre da zona lhes conseguia oferecer: pão, café e às vezes sopa.
Ao fim de dez dias deste verdadeiro calvário e já com negociações para os instalar provisoriamente no Luso, o governo português acabou por lhes negar a entrada. De regresso a França, estiveram ainda vários dias no comboio até os alemães decidirem interná-los em Mouserolles, perto de Baiona, num antigo campo de internamento para republicanos espanhóis durante a Guerra Civil.
Libertados meses depois, muitos conseguiram partir para outras paragens. Outros acabaram por ficar na França de Vichy. Destes, poucos sobreviveram aos campos de extermínio.

Do Preâmbulo de Margarida de Magalhães Ramalho a O comboio do Luxemburgo 

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