domingo, 31 de julho de 2016

Primo Levi: «Procurava-te nas estrelas»

Procurava-te nas estrelas
quando em criança as interrogava.
Perguntei por ti às montanhas,
mas só me deram em poucas ocasiões
solidão e breve paz. 
Porque faltavas, nas longas noites
cismei no disparate insensato
de que o mundo era um erro de Deus,
eu um erro do mundo.
E quando, diante da morte,
gritei que não com todas as fibras,
que ainda não terminara,
que tinha ainda muito a fazer,
foi por te ter à minha frente,
tu comigo ao lado, tal como hoje sucede,
um homem uma mulher sob o sol.
Voltei porque tu existias.
Primo Levi
(tradução de Vasco Gato)
Primo Levi (1919-1987)

The Spielberg Jewish Film Archive - Theodor Herzl - Father of the Jewish State

Retirado de:http://notintheheavens.blogspot.pt/

Vitebsk: uma pátria para Marc Chagall?

Apesar de Marc Chagall ter passado quase toda a sua vida em terra francesa, uma fuga ao nazismo impôs-lhe um intervalo americano de seis anos, Vitebsk, cidadezinha, na Rússia, que o viu nascer, nunca o abandonou, perfilando-se como linha segura entre o pintor e o judaísmo. Um útero espiritual, refúgio onde Chagall encontrava casa para as suas memórias.

Marc Chagall, «Sobre Vitebsk», c. 1914

Neste quadro podemos observar a catedral de Vitebsk, do século XVII. À sua volta, aproximadamente, seiscentas casas pertencentes às famílias mais abastadas da cidade. Poucas delas pertenciam a judeus. Estes, contrariamente ao protótipo do judeu abastado, habitavam os bairros pobres, em humildes choupanas, agrupadas em torno de angulosas vielas.
Marc Chagall, «A Casa cinzenta em Vitebsk», c. 1917

Nessas vielas encontrava-se o armazém do pai de Chagall, Zahar Segal, que mudará o nome para "Chagal". Marc acrescentar-lhe-á mais um "l" para facilitar a pronúncia francesa.
Marc Chagall, « Amantes sobre a cidade (Vitebsk)», 1918
Marc Chagall, «Praça do Mercado, Vitebsk», 1917

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Chansons Yiddish - Tendress et Rage - A Kalte Nakht

Yiddish: Iídiche é uma língua germânica, com cerca de três milhões de falantes, principalmente os judeus asquenazitas, no E.U.A., Israel, Rússia, Ucrânia e outros países. O nome do iídiche é provavelmente uma versão abreviada do ייִדיש - טייַטש (yidish taytsh-), que significa "alemão" judaica.Ver mais aqui

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Federico García Lorca

CEMITÉRIO JUDAICO

As alegres febres fugiram às amarras dos barcos
e o judeu empurrou com o pudor gelado do interior das alfaces.
Os meninos de Cristo dormiam
e a água era uma pomba
e a madeira era uma garça
e o chumbo era um colibri
e ainda as vivas prisões de fogo
estavam consoladas pelo salto do gafanhoto.

Os meninos de Cristo vogavam e os judeus enchiam os muros
com um só coração de pomba
pelo qual todos queriam escapar.
As meninas de Cristo cantavam e as judias olhavam a morte
com um só olho de faisão,
vidrado pela angústia de um milhão de paisagens.

Os médicos põem no níquel suas tesouras e luvas de borracha
quando os cadáveres sentem nos pés
a terrível claridade de outra lua enterrada.
Pequenas dores ilesas abeiram-se dos hospitais
e os mortos vão despindo um trajo de sangue em cada dia.

As arquitectas de geada,
as liras e gemidos que se escapam das folhas diminutas
no Outono, molhando as últimas vertentes,
apagavam-se no negro dos chapéus altos.

A erva celeste e só da qual o orvalho foge com medo
e as brancas entradas de mármore que conduzem ao ar duro
mostravam seu silêncio quebrado pelas pegadas adormecidas dos sapatos.

O judeu empurrou a grade
mas o judeu não era um porto
e as barcas de neve de súbito juntaram-se
nas escadinhas do seu coração.
As barcas de neve que espreitam
um homem de água que as afogue.
As barcas dos cemitérios
que às vezes deixam cegos os visitantes.

Os meninos de Cristo dormiam
e o judeu ocupou sua liteira.
Três mil judeus choravam no medo das galerias
porque reuniam entre todos a custo meia pomba,
porque um tinha a roda de um relógio
e outro uma polaina com lagartas falantes
e outro uma chuva nocturna carregada de cadeias
e outra a unha de um rouxinol que estava vivo
e porque a meia pomba gemia
derramando um sangue que não era o seu.

As alegres febres bailavam pelas cúpulas humedecidas
e a lua copiava em seu mármore
nomes velhos e fitas estragadas.
Chegou a gente que come por trás das rígidas colunas
e os asnos de brancos dentes
com os especialistas das articulações.
Verdes girassóis tremiam
nos páramos do crepúsculo
e o cemitério inteiro era uma queixa
de bocas de cartão e trapo seco.

Já os meninos de Cristo adormeciam
quando o judeu, apertando os olhos,
cortou suas mãos em silêncio
ao escutar os primeiros gemidos.

Federico García Lorca, Antologia Poética, Org. e trad. de José Bento, Relógio D' Água, 1993, pp.313-315